quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Saudades Desencontradas: Tributo à Carl Sagan

Nossa vida é um conjunto de encontros e desencontros fortuitos, muitas vezes por questões espaciais e outras vezes por questões temporais. Pessoas que irão influenciar nossa vida de forma significativa só nascerão daqui há dez anos, enquanto que outras já morreram faz uma década.

Sou cinéfilo de carteirinha. Em uma de minhas caminhadas pelas locadoras da vida, no final de 2004, conheci o astrônomo Carl Sagan. Infelizmente não foi um encontro cara-a-cara onde eu poderia ter apertado sua mão, pois além dele nunca ter morado na cidade onde vivo ou ter freqüentado as mesmas locadoras que eu, ele já havia morrido há alguns anos. Na verdade eu nem sabia quem ele era. Na época, um mero desconhecido. É tanto que o que me atraiu inicialmente não foi a sua pessoa, mas a sua obra.

Tinha uma locadora perto da minha casa que estava num processo de modernização. Explico melhor: estava se desfazendo de todos as suas fitas VHS e substituindo-as gradativamente por DVDs. E essa substituição se dava na venda de todos as suas fitas VHS a preço de banana e com a conseqüente compra de DVDs. Qualquer um que quisesse poderia ter em sua casa, a baixos custos, títulos dos mais variados desde filmes infantis para as crianças, filmes de ação, ficção e também documentários, só que tudo isso na velha e obsoleta tecnologia do VHS. O tamanho de uma fita dessas não é muito apropriado para se guardar em casa, mas o preço era muito chamativo. Se não me engano, tinham alguns títulos que custavam R$ 10,00 e outros R$ 5,00. Todas as locadoras da cidade estavam fazendo isso e no final o preço baixou até R$ 1,00.

Correndo os olhos pelas prateleiras na busca de comprar algum título famoso, vi algo que me chamou a atenção repentinamente. Uma série chamada "Cosmos" enfileirada num canto esquecido da locadora. Eram várias fitas e cada uma com um episódio da série. Eu nunca tinha ouvido falar daquela série. Dei uma olhada meio desinteressada e li algumas sinopses. Vi que era sobre astronomia e que tinha sido produzida há quase 25 anos, no início da década de 1980, por um tal de Carl Sagan. Como eu gostava de material que falasse sobre o universo e o preço estava bom, acabei escolhendo um episódio que eu achava que iria ser interessante e comprei. Peguei o "Episódio 9 - A Vida das Estrelas - Nascimento, vida e morte das estrelas.". Chegando em casa guardei junto aos meus outros filmes para assistir depois.

Lá em casa tínhamos um aparelho novo de DVD e um videocassete velho. A preferência sempre foi do DVD e este ficava conectado na televisão continuamente. Nessa época as locações ainda tinham títulos bem distribuídos entre VHS e DVD, mas como o DVD estava tomando conta do mercado, dificilmente alugávamos um filme em VHS. Então pensei que quando fosse o caso de desligarmos o DVD e conectarmos o videocassete, eu poderia assistir aquele documentário.

Uns três ou quatro meses depois, tendo ignorado completamente nesse intervalo de tempo a existência daquela fita do "Cosmos" que eu tinha comprado, alugamos um filme em VHS. Então, numa tarde preguiçosa de sábado, como o videocassete já estava conectado na televisão, resolvi dar uma chance ao "Episódio 9". Enquanto minha querida esposa Ana dormia na cama, eu, deitado ao seu lado, assisti aquele velho VHS empoeirado.

A abertura do episódio começava com uma frase: "Cosmos – Uma Jornada Pessoal" ao som de uma linda e tranqüilizante sinfonia musical. A primeira frase do episódio me impressionou muito: "Se você deseja fazer uma torta de maçã do nada, você deve primeiro inventar o Universo.". Era um documentário sobre o nascimento e morte das estrelas e explicava como eram formados os átomos e como existe toda uma conexão entre todas as coisas. Tinha a duração aproximada de 50 minutos. O narrador e apresentador era o próprio autor, Carl Sagan.

Com toda sua poesia e explicações bem compreensíveis que lhes são características, Carl fez com que minha atenção e empolgação aumentassem cada vez mais e meus olhos fitavam naquele maravilhoso universo de conhecimento. E o entusiasmo com que ele apresentava era contagiante. Para descrever o que aconteceu comigo, uso uma expressão que escutei de um querido amigo: "Mind Blowing Experience!". Foi uma verdadeira experiência de estourar os miolos, literalmente.

A partir de então é como se tivesse acendido uma chama dentro de mim para que eu realmente percebesse o quão interessante, intrincado e magnífico é o nosso universo. E como é estimulante estudar e aprender sobre ele. Poderíamos até descrever esse sentimento como algo "religioso", de certa forma. Nas palavras de Albert Einstein: "Se existe algo em mim que pode ser chamado de religioso, esse algo é a admiração ilimitada pela estrutura do mundo tão longínqua quanto a nossa ciência pode nos revelar.".

Pois bem, tendo visto aquela maravilha de documentário com suas animações computadorizadas antiquadas e toscas dos anos 1980 (mas nem por isso tornando o material menos interessante), fiquei louco para voltar naquela locadora e comprar os episódios que faltavam. No dia seguinte, peguei meu carro e fui na tal locadora. Chegando lá, com alguns meses de atraso, vi que o estoque de VHS estava minguante e quase no fim. Fui naquela bendita prateleira, mas não se encontravam mais lá as outras fitas. Provavelmente outros aficionados em ciências já tinham rapinado toda a obra do Dr. Sagan. Ainda procurei nas outras prateleiras restantes. Talvez, quem sabe, tivesse sobrado um mísero episódio do "Cosmos" esquecido entre "Duro de Matar" e "Exterminador do Futuro". Procurei em vão. Ainda tentei perguntar ao atendente da loja se ele não sabia de nenhum vestígio remoto daquela estupenda série. Ele não sabia nem do que eu estava falando.

Nos meses seguintes me informei melhor sobre a série pesquisando pela Internet. Alguns meses depois, no primeiro semestre de 2005, felizmente encontrei a série sendo vendida no Mercado Livre. Eu costumava freqüentar o Mercado Livre para compra e venda de DVDs de filmes. O vendedor, para minha surpresa, morava na minha cidade, Fortaleza-CE. Comprei logo, antes que mais esse item sumisse das minhas vistas (eu não cometeria o mesmo erro novamente). Eram DVDs piratas copiados diretamente da série original em VHS, mas estavam com ótima qualidade.

A série tem 13 episódios, dos quais eu só tinha assistido 1 deles. Ainda faltavam 12 episódios, 50 minutos cada aproximadamente, de contemplação, aprendizado e maravilhamento. Fui assistindo na ordem desde o primeiro até o último. A sensação era tão boa que é difícil descrever. Outra sensação que tive foi a seguinte: depois que eu via cada episódio, eu sabia que ainda faltavam outros ainda por assistir e isso me alegrava. Chegou um momento que faltavam 6 episódios que eu não tinha visto. Depois faltavam 5, e assim por diante. E é engraçado, mas eu estava muito feliz por ainda faltarem alguns para ver. Era tão legal que eu me alegrava sabendo: "Puxa, ainda tenho mais 4 episódios para assistir. Que bom!". A sede de conhecimento era grande, mas também era boa a sensação de que eu iria continuar aprendendo. É tanto que eu não fiz questão de assistir tudo de uma vez (acho que levei um pouco mais de 2 semanas para assistir todos). Eu quis saborear aqueles momentos de ignorância ainda tendo algo para assistir. Por fim, sobrou apenas um último episódio, o de número 13, a última sensação de incompletude a respeito daquela série deslumbrante. Depois que eu assistisse, só me restaria assistir de novo (algo que eu já fiz, inclusive alguns episódios eu já assisti umas 4 vezes). Mas como somos imperfeitos, sempre temos algo novo a aprender. Algum detalhe que não foi prestada a devida atenção, algum conhecimento que foi aliado a outros posteriores, coisas que foram esquecidas, vendo de um novo ângulo as explicações, entendendo melhor, pesquisando em outros lugares por informações complementares e assim por diante.

Nossa ignorância é tão grande que temos que estudar continuamente (muitas vezes para conseguirmos nos manter no mesmo lugar). De tal forma que, terminar de assistir o "Cosmos" só me incentivou ainda mais na busca de conhecimento. Foi um empurrão bem forte na direção da ciência. Um empurrão dado por Carl Sagan, um dos maiores divulgadores da ciência que esse planeta já conheceu. Um empurrão dado há mais de 25 anos, quando ele resolveu produzir a série televisiva "Cosmos", filmando ao longo de três anos, em quarenta locais de doze países, e que já atingiu mais de 600 milhões de pessoas em mais de 60 países, sendo a série mais largamente difundida e assistida de todos os tempos. Em 2005 lançaram a série oficialmente em DVD para a comemoração dos seus 25 anos e a abertura é feita pela sua esposa, Ann Druyan. Obviamente que também já comprei.

Carl Sagan morreu em 20 de Dezembro de 1996 aos 62 anos de idade depois de anos de batalha contra uma rara doença na medula óssea chamada mielodisplasia. Um pouco dessa luta é relatado por sua mulher no último livro escrito por ele e publicado postumamente "Bilhões e Bilhões". Despediu-se de sua filhinha dizendo: "Bela, bela, Sasha. Você não é só bela, você também é deslumbrante.". Ann Druyan faz um relato emocionante dos seus últimos momentos com Carl: "Durante as horas seguintes, os monitores do hospital pareceram documentar uma mudança na situação. Minhas esperanças se renovaram, mas no fundo da minha mente não pude deixar de observar que os médicos não partilhavam meu entusiasmo. Viam nessa recuperação das forças aquilo que realmente era, o que eles chamam de "veranico", uma breve trégua do corpo antes de sua luta final "e uma vigília de morte". Carl me disse calmamente: "Vou morrer.". "Não", protestei. "Você vai vencer desta vez, assim como já venceu antes, quando tudo parecia sem esperança." Ele se virou para mim com aquele mesmo olhar que eu tinha visto inúmeras vezes nos debates e brigas de nossos vinte anos de trabalhos em conjunto e amor apaixonado. Com uma mistura de fino bom humor e ceticismo, mas como sempre, sem nenhum vestígio de autopiedade, disse ironicamente: "Bem, vamos ver quem tem razão desta vez.". Sam, então com cinco anos, veio ver seu pai pela última vez. Embora estivesse com dificuldade para respirar e falar, Carl conseguiu se recompor para não assustar seu filhinho. "Eu te amo, Sam." foi só o que conseguiu dizer. "Eu também te amo, papai.", disse Sam solenemente.".

E hoje fazem exatamente 10 anos que ele se foi, deixando saudades não apenas na sua família e amigos, mas em todos que o conheceram e sem dúvida naqueles que virão a conhecê-lo através de sua obra. Sua obra é tão vasta e preciosa que ainda tenho muito a aprender com ele. Já li seis de seus inúmeros livros publicados e ainda tem muitos pela frente. Que bom!

Hoje ele não é mais um desconhecido pra mim, mas parece ser alguém da família com quem sempre convivi.

Termino colocando a minha citação favorita desse grande homem:

"Diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, é um imenso prazer para mim dividir um planeta e uma época com você." (Carl Sagan)




E me atrevo a responder: "Carl, pode ter certeza, o prazer é todo nosso!"

Material adicional de apoio:

Carl Sagan
http://en.wikipedia.org/wiki/Carl_Sagan
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Sagan

In Memorian
http://www.asterdomus.com.br/artigo_carl_sagan_in_memorian.htm
http://tecnocientista.info/noticia_detalhe.asp?cod=4038
http://str.com.br/Scientia/bilhoes.htm

Cosmos
http://en.wikipedia.org/wiki/Cosmos:_A_Personal_Voyage
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cosmos

Citações
http://en.wikiquote.org/wiki/Carl_Sagan
http://pt.wikiquote.org/wiki/Carl_Sagan