terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Visitante tardio num mundo antigo

Desde crianças, aprendemos de forma resumida sobre o ciclo da vida. Os nossos primeiros professores dizem que: "o ser vivo nasce, cresce, reproduz-se e morre". Sendo que, quando nascemos, uma infinidade de acontecimentos já se passou pelo mundo: impérios surgiram e caíram, guerras tiveram lugar, várias descobertas foram feitas e tantas outras invenções elaboradas, continentes foram colonizados, revolucionários e descobridores deixaram sua marca, pessoas escreveram livros divulgando seus pensamentos e assim por diante. E isso se dá de tal forma que quando nasce um bebê, ele tem que passar vários anos estudando numa escola só para poder aprender o básico do que já aconteceu, uma revisão geral, tentando recuperar o conhecimento até então acumulado por tantos outros que nasceram e morreram antes dele para que, só então, consiga dar continuidade, daí para a frente, ao progresso de sua civilização.

Nascendo tão tardiamente num mundo tão antigo, pode nos levar a mal-interpretarmos várias coisas. Uma criança pode olhar ao seu redor e pensar que tudo aquilo que ela vê sempre esteve ali e sempre foi daquele jeito. Um pensamento que pode ter é que "o mundo foi feito para mim". Imaginemos, uma criança, com uma visão limitada sobre a história, vendo todos aqueles maravilhosos brinquedos, aqueles carros que levam as pessoas, aqueles equipamentos eletrônicos, computadores, telefones e televisão. Tudo tão prontinho, tudo tão bem acabado. Uma bicicleta que é especialmente para o seu tamanho e um tênis que cabe direitinho no seu pé.

Isso me faz lembrar de uma história contada por Rubens Alves sobre uma experiência feita com macacos. Uns psicólogos puseram cinco macacos dentro de uma jaula, dentro da jaula uma mesa, em cima da mesa um cacho de bananas. Os macacos entraram lá, viram as bananas, viram a mesa e, inteligentes que são, disseram: "vamos subir na mesa para comer banana". Na hora em que o macaco subiu na mesa, os psicólogos estavam preparados com uma mangueira de água gelada e deram um banho nos macacos, que não apanharam a banana. Passado um tempo, resolvem: "vamos comer banana". Outro macaco subiu em cima da mesa e os psicólogos deram outro banho gelado no macaco. Eles não entenderam o que estava acontecendo. Mas, depois do quarto banho, perceberam que havia uma lógica: quando subiam em cima da mesa, vinha banho. Como não queriam tomar banho, estabeleceram, lá entre eles, o seguinte: quem tentasse subir na mesa apanhava. Então, toda vez que um macaco tentava subir na mesa, ele apanhava. Os psicólogos tiraram um macaco que sabia do banho e puseram um macaco fresquinho, que nada sabia sobre o banho. Ele chegou lá, viu a banana e falou: "eu vou comer banana". Na hora que ele tentou subir na mesa, os outros quatro o agarraram e deram uma surra nele. Ele não entendeu nada: achou que era um trote. Passado algum tempo, ele pensou: "vou comer banana". Na hora que ele subiu na mesa, apanhou de novo. Na terceira vez que isso aconteceu, ele compreendeu: nesta jaula, macaco que tenta subir na mesa, apanha. Aí tiraram mais um macaco e puseram outro macaco fresquinho. Aconteceu exatamente a mesma coisa: quando ele tentou subir na mesa, não só os três, que já sabiam do banho, mas também o outro, que nada sabia do banho, se juntaram e deram uma sova no macaco. Aí eles foram tirando os macacos até que ficaram lá só macacos que nada sabiam do banho. Mas eles continuavam a bater nos macacos que subiam na mesa. Os psicólogos brincam, dizendo: se perguntassem aos macacos por que agiam assim, eles responderiam que: "É porque, nesta jaula, sempre foi assim: quem sobe na mesa, apanha.".

Essa idéia de que "sempre foi assim" é algo tão básico e intuitivo que, às vezes, é difícil de percebermos o nosso engano. Tantas são as sociedades humanas que continuam praticando rituais antigos exatamente porque "sempre foi assim desde o inicio dos tempos". Contudo, ao longo do tempo e amadurecimento, aquela criança vai aprendendo que tudo que está ao seu redor nem sempre foi assim. À primeira vista, realmente pode parecer que tudo já estava pronto e bem ajustado, mas olhando bem para trás e estudando a sua história vai ver que antigamente os carros eram puxados por animais, as roupas eram feitas de pele e os brinquedos eram meros artefatos de madeira. Nada de computadores, no máximo um ábaco primitivo. Nada de comida fácil e fresquinha congelada na geladeira, mas apenas animais em currais prontos para o abate.

Foi um longo caminho até onde estamos, com um grande acumulo de conhecimento, aproveitando as estruturas já montadas pelos nossos ancestrais. O nosso ciclo de vida ser tão curto, permitindo que vivamos apenas algumas décadas, é uma das limitações que nos levam a esse engano. Mas podemos ser esclarecidos pelos registros históricos, pelas cartas de nossos avós, pelas ferramentas primitivas do "homem das cavernas", pelas construções deixadas por civilizações antigas, por papiros enrolados dentro de bibliotecas antigas, enfim, pelos vestígios da nossa própria história.

Mais difícil ainda é percebermos o engano que muitos temos sobre o mundo natural. Ficamos surpresos ao contemplar as maravilhas da natureza. Vemos sistemas fina e minunciosamente ajustados: a audição dos cachorros conseguindo ouvir sons em uma larguíssima faixa de freqüências e seu olfato sentindo milhares de aromas diferentes; abelhas e flores mutualmente dependentes para a sobrevivência recíproca onde uma dá o alimento e a outra cuida da polinização; vacas que possuem bactérias no tubo digestivo especializadas na fermentação da celulose ajudando na sua digestão; os dentes do leopardo ficaram cada vez mais afiados e as pernas das gazelas tornaram-se mais musculosas e rápidas ao longo da "corrida armamentícia" que travaram um contra o outro; as zebras tentaram ficar invisíveis na paisagem, enquanto que a visão do leão ficava mais aguçada; tubarões que têm sensibilidade suficiente para sentir uma gota de sangue dentro de uma piscina olímpica; morcegos que, tendo hábitos noturnos, possuem um afinadíssimo sistema de ecolocalização onde conseguem saber exatamente a localização de pequenos insetos (além de não se confundirem com os estalos produzidos pelos outros morcegos ao seu redor e manobrarem perfeitamente entre as árvores e dentro de cavernas); e os seres humanos com suas ágeis mãos capazes de manipular todo tipo de objetos e seus cérebros avantajados capazes de criar as mais modernas máquinas e entender como funciona (apesar de não completamente) o mundo ao seu redor.

Como comentei no texto "Ilusão de Separação", temos dificuldade de pensar em termos de milhares de anos e menos ainda podemos conceber tempos geológicos de centenas de milhões de anos. Sendo produtos tardios de um processo de evolução biológica que começou há bilhões de anos, fica difícil recapitularmos tudo que se passou até aqui. Ao olharmos para a natureza, só vemos produtos finais (porém continuando a evoluir) de um mundo antigo, produtos já em plena interação e temos a ilusão de que "sempre foi assim".

Vemos os cavalos e percebemos que eles só tem um dedo. Será que sempre foi assim? Ao estudarmos sua embriologia e anatomia, verificamos vestígios de outros dois dedos ainda remanescentes deslocados por detrás da pata e escondidos das nossas vistas, e nos fósseis de seus ancestrais vemos os três e até quatro dedos completos. As baleias sempre estiveram no mar? Da mesma forma, ainda verificamos vestígios de quadris e até mesmo pernas e dedos, que antigamente foram usados por seus ancestrais terrestres (por exemplo, Abulocetus natans) na transição da terra para a água. E nós humanos, sempre vestimos ternos e calçamos sapatos? Nem sempre. O embrião humano passa por um estágio no qual possui guelras (lembrando-nos de nossos ancestrais aquáticos) e outro, em que apresenta cauda (lembrando-nos do nossos ancestrais subsequentes, os répteis). Essas "sombras de antepassados esquecidos" somem à medida que o desenvolvimento continua e o feto, então, vem a tomar a forma de um ser humano, escondendo-nos (não completamente) tudo que já se passou.

Embrião humano com 4 semanas

Felizmente, da mesma forma que podemos contemplar os artefatos de tempos históricos e aprendermos sobre as civilizações antigas, também podemos aprender sobre o passado do mundo natural através daquilo que nos foi deixado de herança: fósseis, desenvolvimento embriológico, anatomia, órgãos vestigiais, e a maior herança de todas, o nosso DNA. O nosso código genético é um verdadeiro livro de histórias contando sobre as dificuldades e vitórias de tempos antigos, conta-nos sobre as lutas que travamos, os lugares por onde passamos, os continentes que colonizamos, enfim, um verdadeiro tratado histórico sobre a vida. Sobre isso, o geneticista inglês Bryan Sykes escreveu um livro fabuloso chamado "As Sete Filhas de Eva" (The Seven Daughters of Eve), onde através de uma ampla pesquisa sobre o DNA mitocondrial conseguiu descobrir muito da vida das nossas "mães ancestrais" e como elas levaram seus clãs para todos os cantos o mundo.

É isso que somos, visitantes tardios num mundo antigo, carregando conosco as cicatrizes dos tortuosos caminhos que seguiram nossos ancestrais.