segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Esponjas Permissivas

Muitos animais não precisam de cuidados paternos, pois já nascem prontinhos para a vida. Aranhas não precisam aprender a fazer teias, pois já nascem sabendo o estilo de tecelagem de sua espécie, com toda a programação genética embutida e gravada no seu DNA. Tartarugas marinhas saem dos ovos e vão direto correndo para o mar e não precisam ter aulas de natação. Filhotes de jacaré já saem dos ovos abocanhando os primeiros peixinhos que encontram pela frente. E os tubarões são tão precoces que já começam a caçar antes mesmo de nascerem, onde, através da prática do canibalismo, os irmãos comem uns aos outros dentro do ventre materno sobrevivendo os mais fortes e aptos, mostrando desde cedo que são predadores natos (será que poderíamos dizer "pré-natos"?).

Por outro lado, inúmeras espécies não podem sobreviver desprovidas de cuidados parentais. Os pequenos filhotes das aves precisam que suas dedicadas mães tragam o alimento e regurgitem diretamente na sua garganta; os mamíferos precisam dos iniciais cuidados maternos com a obrigatória amamentação; e assim por diante. E nós estamos nesse grupo, o grupo dos necessitados que carecem de tratamento especial. Quando nascemos, somos totalmente dependentes de nossos pais. Precisamos deles para tudo, desde a alimentação até o convívio social. Se um bebê humano for deixado sozinho e sem cuidados, não tem a menor chance de sobrevivência. E os humanos, além das dependências físicas, ainda temos uma dependência a mais, a dependência cultural.

Para ilustrar a nossa precoce dependência cultural, lembro-me de um filme. Tem alguns filmes que a gente assiste mil vezes e nunca fica sem graça, principalmente se for uma boa comédia. Para mim, um desses filmes é "O Tiro Que Não Saiu Pela Culatra" (Parenthood). A trama acontece ao redor da família Buckman e foca em toda a problemática que qualquer família pode ter: filhos problemáticos, adolescentes mal-humorados, brigas de namorados, pais inexperientes, esposas incompreendidas e maridos desleixados. Um dos membros da família, interpretado pelo ator Rick Moranis, tenta educar sua filha com doses exageradas de informação. Num dos diálogos, ele diz: "Nossas crianças são mais capazes de absorver informação do que nós... mesmo assim nós insistimos em trata-las como se fossem adoráveis pequenos retardados. Elas são como esponjas, apenas esperando para absorver.". Apesar de no filme o personagem satírico, que é esse pai, ter um zelo excessivo pela educação da filha, talvez chegando até mesmo a ser prejudicial, ele está certo em uma coisa: nossos cérebros são como esponjas, sedentos por informação.

Seria um exagero descabido dizer que nascemos totalmente despreparados. Obviamente que o nosso cérebro já está preparado para fazer muitas coisas, além de manter o funcionamento básico de corpo. Já nascemos sabendo algo muito importante, nascemos sabendo absorver informações e, principalmente, sabendo aprender. Tendo instrumentos aptos para captar informações de todos os lados, usando pela primeira vez os cinco sentidos, captamos os sons das vozes dos nossos pais, a imagem dos seus rostos e o carinho de suas mãos.

O ambiente no qual somos expostos é primordial para o nosso desenvolvimento. Sendo pouco estimulados, seriamos limitados em nossas capacidades. Por exemplo, uma criança que nasce surda não é estimulada com os sons da linguagem de seus pais, consequentemente não aprende a falar, daí o termo "surdo-mudo", onde a mudez foi conseqüência direta da surdez, mesmo que todos os aparelhos vocais estejam plenamente funcionando (esse quadro pode ser revertido com o acompanhamento adequado). Outro caso seria uma criança que se tornaria cega de um olho se, desde o seu nascimento, mantivéssemos um tampão num dos seus olhos, evitando o estímulo luminoso tão necessário para a formação completa da visão (esse quadro é irreversível). Em contrapartida, num ambiente amplamente estimulante, os maiores dons podem brotar de uma mente infantil.

Um aspecto que temos que levar em conta é que a mente de uma criança não possui mecanismos para selecionar o que está sendo aprendido. Tudo é válido. O cérebro não tem preferências. A entrada é liberada para qualquer tipo de ensinamento. Sendo totalmente indefesos nos primeiros momentos de vida, não podemos nos dar ao luxo de ficar escolhendo o que vamos aprender (na verdade, nem possuímos critérios para isso). Só o que podemos esperar é que nossos pais, tendo sobrevivido até o ponto de terem tido filhos, saberão cuidar da gente. Temos que confiar neles. Temos que absorver tudo que eles têm a nos dizer, afinal esse pode ser o seu segredo de sua vitória.

No ponto de vista dos genes, podemos usar uma ilustração resumida para entender o que se passa: "Eu sou um gene e quero me replicar. Para isso devo fazer com que o corpo que me possua reproduza-se (em outras palavras, replique-se). Depois disso, uma cópia de mim fará parte de outro corpo mais jovem. Não quero desperdiçar essa nova cópia. O corpo antigo, tendo sido bem sucedido na arte da sobrevivência, certamente saberá o que é melhor para o corpo jovem. Ele cuidará bem da sua prole, afinal é um importante investimento genético. Então, estando num corpo jovem, devo fazer com que este corpo confie cegamente no que o corpo antigo disser e ensinar. Meu novo corpo aprenderá e obedecerá tudo que o antigo me disser, afinal de contas, deve ser com esses ensinamentos que ele conseguiu sobreviver até se reproduzir.". Logicamente que genes não pensam e nem fazem planos para o futuro. Mas isso é apenas uma forma de interpretar o mecanismo inevitável que sofrem os genes durante a seleção natural, sendo que aqueles que projetam melhores corpos tendem a sobreviver ao longo das gerações, enquanto que aqueles que não colaboram na construção de um corpo eficiente certamente serão ceifados pela implacável seleção natural. (Ignorando a ilustração do gene, o argumento não ficará mais fraco, pois, como já foi explicado, não temos, a priori, qualquer critério de escolha do que vamos aprender, absorvendo liberalmente qualquer informação que nos atinja).

Sendo tão "permissivos" a qualquer entrada que seja, estamos vulneráveis a qualquer tipo de "contaminação" cultural local a que formos expostos. Nascendo no Brasil, aprenderemos a falar português, nascendo no Japão, aprenderemos a falar japonês. Não importa a cultura onde a criança nasça, o cérebro está preparado para aprender qualquer coisa, seja uma língua primitiva de uma tribo africana isolada, seja as abstrações mais imaginativas da tela de um computador na Europa civilizada. Aprender é o nosso dever para podermos sobreviver. Temos que nos comunicar com os outros, temos que gritar por comida, temos que pedir por água e temos que mostrar onde nos machucamos quando caímos. Nossos cérebros são como esponjas permissivas acríticas que absorvem qualquer vento de doutrina, qualquer sopro de ideologia, cantos tibetânos ou cantigas de ninar. Já ouvi falar de um menino de apenas 4 anos que sabia celebrar uma missa completa, toda a liturgia, todas as falas do padre e todos os cânticos, sem errar uma vírgula. O que quer que ouçam, guardam firmemente em sua mente e aquilo fica marcado como ferro quente nas costas de um touro, seja mentira ou verdade, mito ou realidade, exagero ou precisão, não possuem ferramentas para criticar tais ensinamentos. Só resta aprender e aprender, permissivamente.

"Esponjas" absorvendo culturas variadas

Não apenas os pequeninos, mas durante toda a nossa vida ainda absorvemos informação constantemente, e a nossa permissividade esponjosa continua conosco. Obviamente que um adulto pode criticar melhor as informações que recebe, mas em muitos casos não é isso que acontece e continuamos tão influenciáveis quanto antes. Somos muito frágeis e nossa fragilidade nos leva aos mais diferentes caminhos para apaziguar nossos sofrimentos de cada dia. Somos facilmente enganados, inclusive por nós mesmos, e nem percebemos.

Felizmente existe um método de evitarmos sermos iludidos por nós mesmos chamado "método científico". Comparando evidências e fazendo experimentos, observando fenômenos e verificando seus resultados, podemos testar as inúmeras hipóteses que elaborarmos e eliminar os caminhos do engano. Não é um método perfeito (se é que isso existe), afinal somos humanos e também somos guiados por emoções, mas garante suficientemente bem a imparcialidade das conclusões. Como disse Carl Sagan "A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos.". E também diz: "A ciência é uma forma de não enganarmos a nós mesmos". No seu livro "O Mundo Assombrado Pelos Demônios", Carl Sagan nos brinda com um "Kit de detecção de mentiras" em um de seus capítulos. É um kit muito interessante e vale a pena das uma olhada. Para cérebros permissivos e enganáveis como os nossos, é sempre bom estar preparado.

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Devo te falar que você está me surpreendendo com sua capacidade literária...

Bons exemplos(filmes e alusões ao cotidiano),o que dá uma notória descontração ao texto.

Parabéns!

Ass:Marcelo Arraes

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quarta-feira, janeiro 10, 2007 5:48:00 AM  
Anonymous Anônimo said...

Calmaê, vai devagar senão ele se empolga... Te amo minha vida, você realmente está escrevendo muito bem.

quarta-feira, janeiro 10, 2007 5:39:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

naum podemos deixar de citar grandes do pensamento cientifico. Sagan foi(é)um icono no campo cientifico. Mas muito criticado. Acho q fé eh tudo aquilo q se acredita se precisar de provas.E onde existe uma a outra(ciencia) naum entra. Nao contrariemos a lei da impenetrabilidade.
Parabens Juliano....cada dia melhor!!

segunda-feira, fevereiro 05, 2007 4:33:00 PM  

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