terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Poliedros Adestrados

Quando eu era adolescente, começamos a criar uma cadela como bichinho de estimação. Era uma poodle chamada Pérola. Alguns anos mais tarde, depois que a Pérola saiu lá de casa, compramos uma outra poodle e a chamamos de Milla. Assim fiquei familiarizado com a vida de um cachorro doméstico. É um animal que gosta de brincar incessantemente, está sempre do seu lado, muito carinhoso, obedece cegamente as suas ordens, faz tudo para te agradar, fica extremamente feliz quando você chega em casa e triste quando você sai. É simplesmente impressionante como os cachorros são carentes e querem carinho o tempo todo. Fico imaginando o que pode passar pela cabeça de um deles enquanto aguarda o seu dono chegar em casa: "Puxa, cadê o meu dono? Ele tá demorando muito. Tô morrendo de saudade! Eu amo meu dono.". Daí quando você chega em casa: "Esse cheiro me é familiar. Meu dono chegou. Viva! Vou lamber ele todinho, vou pular em cima dele, não vou sair do seu lado. Como ele é legal! Não consigo nem me conter de tanta felicidade. Meu coração fica a mil por hora. Estou tão emocionado. Que bom que ele chegou! Auau. Eu te amo, dono querido. Faz um carinho em mim. Auau. Que alegria!". Pois é, quem tem cachorro sabe do que estou falando.

Quando me casei, fui morar com minha esposa e os bichos de estimação ficaram na casa dos meus pais. Depois de uns dois anos de casado, acabamos por adotar uma gatinha abandonada. Pegamos ela na rua quando ela tinha aproximadamente 1 mês de vida, levamos para o nosso apartamento e demos à ela o nome de Golinha (em homenagem ao personagem Gollum da história épica "O Senhor dos Anéis"). Diferente de um cachorro que com a simples ausência da dono começa um choro sem fim, os gatos são bem mais independentes. Lembro-me que quando a cadela Milla chegou lá em casa ainda filhote, ao deixa-la no quarto e sair pela porta, ela começava a chorar quando se via só. Por outro lado, a Golinha não reclamava ao ser deixada sozinha no apartamento durante o dia. Como eu e minha esposa trabalhamos, ela fica sozinha o dia todo no apartamento. Isso seria altamente inviável para um cachorro. Os vizinhos provavelmente reclamariam muito dos latidos e gemidos de um cão carente e abandonado. Enquanto o canino te espera ansiosamente em casa, para o gato sua presença é irrelevante e, como já ouvi falar, talvez ele nem goste de você, mas apenas da casa. O cão protege a casa para você, e o gato sente-se o próprio dono da casa.

Os cachorros são muito estabanados, derrubam tudo pela casa, fazem as necessidades em qualquer lugar (se não forem ensinados), sujam-se facilmente, têm que tomar banho semanalmente, tem que sair para passear, incomodam as visitas, latem muito alto e podem perturbar os vizinhos, temos que limpar seus fedorentos dejetos, etc. Claro que os cachorros tem os pontos fortes e são, sem dúvida, o animal que melhor convive com o ser humano e muito úteis em vários aspectos. Entretanto, para quem mora em apartamento, o gato é perfeito: não faz sujeira pela casa, não desarruma as coisas, só faz as necessidades fisiológicas na caixa de areia (não precisam ser ensinados), não fica reclamando de solidão, não precisa ficar tomando banho toda semana (nem todo mês), é muito limpo, não incomoda os vizinhos, é muito independente, cuida-se sozinho, basta que a gente coloque água, comida e troque a areia da caixa. Talvez o que passe pela cabeça de um gato enquanto seu dono está fora seja algo como: "Que vida tranqüila! Ninguém para me perturbar.". E quando o dono chega em casa: "Lá vem aquele chato. Está olhando o quê? Vá cuidar da sua própria vida." (Isso se ele ao menos se desse ao trabalho de perceber a sua presença quando você chegasse em casa – o que não é o caso, na maioria das vezes). É o tipo da coisa, se você quer um companheiro e amigo compre um cachorro, mas se você quer um bicho de estimação que não dê trabalho, arrume um gato.

Quando levamos a Golinha no veterinário, eu vi uma tabela mostrando dezenas de raças de cachorros e outra tabela mostrando dezenas de raças de gatos. Algo me chamou a atenção: a tabela dos cachorros mostrava tantas raças e tão diferentes umas das outras, com cães de tamanhos minúsculos até gigantescos, cães magros e fracos até os grandes e musculosos, cães de todos os tamanhos, formatos, cores, comportamentos, especializados em inúmeras finalidades, orelha levantada ou caída, pelo longo, curto ou sem pêlo, basicamente para todos os gostos que serviriam para donos que fossem desde o atleta esportista até a dondoca sedentária; em contrapartida, a tabela dos gatos, que também mostrava tantas raças, era mais homogênea, o tamanho dos diversos gatos é praticamente constante, o peso do animal nas variadas raças é o mesmo e varia, no máximo, em uns quatro quilos (enquanto que raças caninas podem variar em dezenas de quilos), em geral o quê muda nos gatos é a coloração e características do pelo, mas a morfologia não sofre variação quase nenhuma. Os gatos parece que seguem um molde padrão que pode variar pouquíssimo, enquanto que os cachorros variam enormemente em todos os sentidos. Por quê?

Diferentes raças de cachorros apresentam uma enorme diversidade de características corporais

Os gatos são morfologicamente muito semelhantes, não sofrendo quase nenhuma diversidade corporal
Na época pensei que provavelmente poderia ter sido por causa do processo de domesticação, onde o homem teria trabalhado mais minuciosamente e dedicadamente no cachorro do que no gato, selecionando as linhagens de cachorro ao longo das gerações numa seleção artificial, além do que o cachorro teria sido mais útil e tido uma convivência melhor com o homem. Bem, em parte foi isso, mas será que foi só isso? Será que o trabalho diligente do homem na domesticação de plantas e animais é o suficiente para molda-los de acordo com sua vontade para exercer qualquer finalidade que desejar? Por quê conseguimos domesticar os porcos, vacas, galinhas, cavalos, milho e feijão, porém não conseguimos domesticar as zebras, morcegos, pingüins e guepardos? Já pensaram se tivéssemos morcegos de estimação, verdadeiros caçadores noturnos ao nosso dispor, que poderiam defender as nossas casas de indesejáveis ladrões? E os guepardos, imaginem se tivéssemos esses animais capazes de correr 110 quilômetros por hora sob o nosso comando (talvez as patrulhas policiais que perseguissem fugitivos não precisassem de carros).

Lendo um dos livros de Stephen Jay Gould chamado "Os Oito Porquinhos" me deparei com um artigo entitulado "Uma vida de cachorros no poliedro de Galton" que tinha exatamente a explicação para a minha curiosa dúvida: "Por quê as raças de cachorro são tão dispares e as raças de gato o são tão relativamente pouco?". Fiquei tão alegre quando vi essa pergunta sendo feita, é tão bom você ver que pessoas já tiveram as mesmas dúvidas que você, e mais legal ainda é verificar que já existe uma resposta. A resposta está nos Poliedros de Galton. Esse cientista vitoriano chamado Francis Galton, que foi primo de Charles Darwin, contribuiu para uma enormidade de campos do conhecimento humano, incluindo geografia, genética, estatística, meteorologia, biologia e antropologia.

A idéia do poliedro de Galton é a seguinte: ele sugeriu que a seleção natural talvez não fosse capaz de modelar ao seu bel prazer ilimitadas características corporais, pois a futura modelagem estaria restringida às trajetórias possíveis que eram limitadas pelo código genético herdado. Nas palavras do próprio Galton: "Os câmbios não se manifestam através de gradações indistinguíveis; há um grande número de estados intermediários, mas não um número infinito... A imagem mecânica seria a de uma pedra desigual que, em conseqüência de sua irregularidade apresenta um grande número de facetas naturais, sobre cada uma das quais pode fazer equilíbrio estável... Se por meio de um poderoso empurrão a pedra é forçada a sobrepassar os limites de uma faceta sobre a qual até o momento descansava, cairá em uma nova posição de estabilidade... A pedra só pode fazer um certo número de posições claramente diferenciadas."

Imaginemos uma bola de bilhar totalmente redonda. O taco pode empurrar a bola para qualquer lado, pois a superfície perfeitamente lisa da bola não impõe limitação nenhuma. A bola pode rolar para qualquer caminho livre e desimpedida. Por outro lado, um poliedro não possui toda essa flexibilidade, pois a sua estrutura interna restringe os caminhos possíveis. Um exemplo de um poliedro simples seria um hexaedro (ou seja, um cubo ou um dado convencional, com o qual estamos bastante familiarizados nos nossos jogos de tabuleiro). Como explica Gould: "Em termos do modelo clássico do poliedro de Galton, o taco de bilhar da seleção natural sempre pode dar o empurrão efetivo, mas se os canais internos (fixados pela história e implantados na arquitetura genética e ontogênica dos organismos atuais) delimitam um conjunto de trajetórias possíveis como condutos para o empurrão da seleção, então estas constrições internas seguramente podem reclamar igual peso como a seleção natural em qualquer explicação completa sobre as causas do câmbio evolutivo particular."

A bola pode alcançar um número ilimitado de posições, contudo os dados só podem configurar poucas possibilidades de resultados diferentes
Sim, mas o que um cachorro e um gato tem a ver com um poliedro? Tudo. A ilustração de Galton explica perfeitamente o motivo da impossibilidade de modelarmos livremente qualquer característica que nos aprouver. Os animais são visitantes tardios num mundo antigo e já possuem toda uma história por trás herdada a duras penas ao longo das inúmeras gerações. Não dá para modificar irrestritamente um projeto que já está em andamento, ignorando a sua história. Para entendermos melhor, verifiquemos o ancestral dos cachorros, isto é, o lobo, a partir do qual o homem selecionou artificialmente a espécie canina. A espécie Canis lupus (lobo-cinzento) foi a ancestral do Canis lupus familiares (cachorro). O que acontece é que esse ancestral possuia uma variabilidade genética muito alta, isto é, uma flexibilidade muito grande, o que dava margem a uma enorme gama de possibilidades, como se fosse um poliedro com inúmeras faces. Como explica Gould: "A cachorro é nosso animal doméstico mais importante, porque seu antepassado, o lobo, Canis lupus, havia desenvolvido alguns padrões afortunados da história, figurando certa predisposição para a companhia humana... A domesticação requeriu certa estrutura de comportamento preexistente.". Enquanto que o Felis silvestris (gato-selvagem) que é o ancestral do Felis silvestris catus (gato doméstico) já tinha uma variabilidade menor, como se fosse um poliedro com menos faces do que o ancestral do cachorro. Isso limitou tremendamente a seleção artificial feita pelo homem, com o gato não sendo tão plástico e maleável quando o cachorro. Mais uma vez, como complementa Gould: "Um leão difere de um gato doméstico muito menos do que um cachorro grande de um pequeno.".

A título de ilustração digamos que o gato é um hexaedro (com 6 faces) e o cachorro é um dodecaedro (com 12 faces). Essa é uma ilustração bem grosseira, diga-se de passagem, porém a idéia básica não perde o sentido e dá para entender facilmente. Então, se um cachorro é um dodecaedro e um gato é um hexaedro, fica fácil de perceber por quê os gatos são tão arredios. Os cachorros nós podemos colocar uma coleira e puxa-los para o lado que for com algumas restrições básicas (por isso temos a oportunidade de termos cães para exercer funções de guarda, caçador, guia de cegos, policial, saltador, corredor, nadador, farejador, pastor, palhaço de circo, ator de cinema, companhia e toda uma infinidade de outras funções), mas um gato não aceita coleiras e suas restrições são bem mais fortes (por isso temos a oportunidade de termos gatos que são... gatos). Gould conclui dizendo: "As diferenças de diversidade entre as espécies domésticas dependem em maior grau da variação disponível no desenvolvimento dos antepassados selvagens do que da magnitude de esforço humano colocado na seleção... Assim pois, levando a metáfora do poliedro de Galton até a sua conclusão , as direções reais do câmbio evolutivo são resultado da interação dinâmica entre o empurrão externo e das restrições internas."

Nos jogos de RPG, os participantes usam dados de várias faces: 4, 6, 8, 10, 12, 20, etc. Dependendo do dado que for escolhido, da quantidade de faces que ele possuir, o jogador terá mais possibilidades de desbravar caminhos que sua imaginação permitir sempre com as restrições dos números que vão aparecer em cada lado. Quanto mais arredondado for o dado, mais ele vai rolar na mesa, mais longe ele vai chegar, mais viradas pode dar, desta forma tornando os caminhos a serem percorridos inúmeros, e quanto menos faces tiver o dado, mais bruscas serão suas viradas dificultando bastante a rolagem e limitando as trilhas do aventureiro. Então, nós que estamos tentando modelar os nossos animais e plantas temos que ter em mente que nem tudo é possível e que mesmo com tempo suficiente, criatividade e diligência exagerada ao longo das gerações, nossos poliedros adestrados nos impõem limites aos quais temos que respeitar.