segunda-feira, 2 de julho de 2007

Delírios Andaluces (por Keichi)

O texto a seguir é de Daniel Keichi. Achei muito interessante, por isso coloquei aqui no meu blog.

---

Enfim, depois de dois anos de fermentação mental e lavagem cerebral, ainda me surpreendo com o dado estado que a mente humana pode alcançar, desde pensamentos desconexos a formulações mirabolantes, a fronteira para essa congregação insana de divagações me parece ainda mais intangível e longínqua, um microcosmo tão vasto em suas infinitas ramificações de raciocínio e tão contraditório como a idéia de ínfimo e infinito entrelaçados em toda sua complexidade imaginativa pode ser.

O ócio, proferido como a máquina criativa por alguns, talvez principal responsável desse fato que venho contar, mas o que seria do ócio sem uma mente doentia para contaminar e como um incansável parasita proliferar por todas as suas tramas a incoerência e a insanidade revelando o que aparentava ser um cidadão comum, ciente de suas ações e de seus pensamentos mundanos, em uma criatura capaz dos atos mais absurdos.

As origens de tais acontecimentos residem no meu interior, basta saber se elas são produtos dos últimos dois anos de uma maquinação que flerta com a insanidade, ou se tais características sempre residiram de uma forma inerte simplesmente sendo despertadas, um processo que venho acompanhando com certo temor, culminando com esse momento fatídico, um processo cuja seqüência ainda me parece incerta.

O verão estava apenas começando, depois de dois anos de uma vida no mínimo atípica, regada a períodos de êxtase e dominada pelo pânico e uma eterna pressão fastidiosa, uma fase que havia enfim chegado ao seu ponto final, mesmo que para isso tenha sido preciso passar por duas semanas no mínimo desgastantes que quase me levaram a um colapso mental e ao rompimento de algumas sinapses. Agora estava na Espanha, mais precisamente em Sevilha, uma cidade simpática, mesmo registrando temperaturas absurdas e um calor próximo do infernal, eu sabia que agora a única coisa a temer era o meu futuro e não uma ameaça onipresente e constante em forma de testes e professores sádicos.

Éramos obrigados a fazer um estágio durante o verão, através de alguns contatos finalmente consegui que me recebessem nessa empresa espanhola, fabricavam peças para as diferentes construtoras aeronáuticas, o trabalho não era emocionante, mas o ambiente era descontraído e como estaria de partida no final de Julho encarava toda a situação como uma boa experiência. As semanas passavam, e com a proximidade das férias, o volume de trabalho diminuía cada vez mais o que me deixava com certos períodos de tempo dedicados absolutamente ao nada, e foi exatamente durante um desses momentos de ócio que talvez a idéia mais brilhante e insana já formulada teve início.

As minhas viagens passadas ao leste europeu, especialmente à Rússia e aos países do Mar Báltico, ainda povoavam a minha imaginação, talvez devido ao fato de não estar tendo muita sorte com a vida noturna sevilhana, ou simplesmente porque esses lugares longínquos realmente são os melhores do mundo para jovens solteiros provenientes de países latinos. Enfim, enquanto estava imerso em meus pensamentos, veio-me a idéia de como eu seria feliz caso pudesse passar novamente um fim de semana nesses lugares, de como a minha vida seria melhor se simplesmente fosse possível me transportar instantaneamente para outro lugar, aproveitar todas as suas maravilhas e depois voltar para as minhas obrigações mundanas em meu sítio de residência, e como a vida seria mais prática se isso se tornasse acessível a todos, imagine não ter que pegar o maldito ônibus ou metrô para ir a faculdade ou trabalho, a interminável espera, o tempo perdido, o cansaço e desconforto envolvidos nesse processo tão arcaico de locomoção, afinal, me perguntava, por que para ir do ponto X ao ponto Y tínhamos que marcar fisicamente nossa presença em todos os infinitos pontos que existem entre esse dois e que não nos provocam o mínimo interesse? Imediatamente me surgiu a idéia de um mecanismo de teletransporte, um dispositivo do tamanho de um telefone móvel, que permitiria ao seu proprietário toda a praticidade do teletransporte banalizado e acessível a todos, bastaria carregar o aparelho com o destino desejado e em questão de frações de segundos o utilizador seria transportado a esse lugar, seja ele o escritório onde trabalha e enfrenta horas de engarrafamento todo dia para chegar ou a capital da Estônia.

Um mecanismo de teletransporte, sim, seria a maior invenção da humanidade, o corte com os gastos de transportes seriam demasiado imensos sem citar as economias de energia e de recursos naturais. As fronteiras perderiam todo o sentido, não haveria diferença entre visitar o seu vizinho ou a Grande Muralha da China, ambos levariam o mesmo tempo, talvez o seu vizinho demorasse mais tempo para abrir a porta, turismo mundial acessível a todos. Foi nesse exato momento que a minha linha de raciocínio tomou outro rumo, afinal, se todos pudessem se teletransportar tão facilmente, qual seria a graça de passar uma noite de sábado em Tallinn ou St. Petersburgo se também haveria hordas de outros teletransportados, todos buscando as maravilhas da vida noturna às margens do Mar Báltico, levando-se ainda em consideração que talvez a maioria da população local, inclui-se jovens garotas eslavas, nem estivesse presente, provavelmente aproveitando o fim de semana para se teletransportar para alguma praia paradisíaca em algum destino tropical. Se houvesse algum dispositivo de teletransporte ele teria que ser meu, e de uso exclusivo, seria o meu segredo, talvez concederia as suas maravilhas também aos meus amigos mais próximos, mas ele teria que estar exclusivamente em minha posse, sim, era uma idéia genial, de praticidade infinita, mas a parte do acesso fácil a todos era extremamente inconveniente e acabava de ser eliminada.

Ciente de que tal aparato talvez me transformaria na pessoa mais feliz do mundo, comecei a pensar em todas as formas possíveis de obter tal maravilha tecnológica e logo cheguei a conclusão que não seria no nosso então tempo atual que acharia a solução de todos os meus problemas e fonte eterna de felicidade, teria que vir do futuro, sim, de um estado mais avançado da civilização humana, mas seriam cinqüenta anos no futuro suficientes para o homem chegar a tal ponto de desenvolvimento? Eu ainda estaria vivo, mas com setenta anos talvez minhas preocupações fossem outras, provavelmente teria uma família, e não creio que veriam bem um homem idoso de família freqüentando a vida noturna polonesa.

Considerando que o meu eu do futuro tivesse esse dispositivo, e não estando em condições de usá-lo para esses fins então agora desejados por mim, ele (ou eu, se preferirem) saberia que em um dado período da vida dele, tal aparato lhe teria feito extremamente feliz e eu no lugar dele (na verdade eu no meu lugar, mas em outra época) faria de tudo para que o meu eu do presente tivesse esse aparato. Eis que a problemática da viagem no tempo entra em cena, se o meu eu do futuro tivesse o dispositivo de teletransporte e a viagem no tempo também fosse possível, com certeza ele faria de tudo para me trazer tal aparato maravilhoso, pois me faria eternamente feliz e conseqüentemente fazendo ele próprio um homem idoso e mais feliz, seríamos uma pessoa com felicidades múltiplas, seja o que isso queira dizer.

Então bastava eu ficar sentado esperando, confiando em mim mesmo (não agora, mas no futuro), e em questão de minutos um gentil senhor me abordaria e me entregaria esse aparelho futurista, talvez até rolasse um rápido diálogo entre eu e eu mesmo, mas nada demais, nada que revelasse muita coisa do meu futuro e acabasse estragando alguma surpresa, nos despediríamos, e provavelmente eu diria alguma coisa do tipo: "Valeu velho, isso era o mínimo que você poderia fazer por mim.". E o gentil senhor sumiria na multidão sorrindo, sabendo que esse era o tipo de piada que poderia esperar dele mesmo.

Pensando bem, cinqüenta anos seriam insuficientes para o homem inventar uma forma de teletransporte tão banal e ainda mais insuficientes para inventar a viagem no tempo, visto que ainda nem se sabe se viajar no tempo seria teoricamente possível, uma questão polêmica entre vários cientistas, muitos afirmam que viajar no tempo seria impossível devido as várias particularidades do universo, mas o que importa realmente é que o tão esperado encontro entre eu e eu mesmo não aconteceria, o que me deixou, digamos, um pouco decepcionado.

Com a opção do meu eu do futuro voltando ao passado descartada, e a opção de entrar numa nave e passar um ano viajando na velocidade da luz enquanto na Terra passam duzentos anos sendo um pouco inviável devido a várias razões como voltar para uma Terra no futuro tendo que rastrear possíveis familiares que não me conhecem, a gama de opções que me restava não era das mais animadoras, até que eu tive a idéia mais simples e infalível de todas: confiar em meus descendentes.

Minha primeira providência foi pegar uma folha, um pedaço de papel ordinário, e com uma caneta, carinhosamente escrevi a data do dia, a hora atual adiantada de quinze minutos, meu nome, um sincero pedido explicitando exatamente o que eu queria, um dispositivo prático de teletransporte que me faria muito feliz e o endereço de encontro, após realizar tal ato, dobrei o papel cuidadosamente e coloquei dentro da minha mochila jurando a mim mesmo que eu passaria aquele pedaço de papel para meus filhos, e eles teriam que jurar que também passariam para os filhos deles, estes que também deveriam fazer um juramento de passar adiante, e, assim, o meu pedido seria passado para as gerações futuras, e quando em um dado momento dentro de algumas centenas de anos, quando a humanidade estivesse usufruindo do teletransporte rápido e prático, e da viagem no tempo ao alcance de todos, um dos meus descendentes voltaria no tempo e me presentearia gentilmente com o tão sonhado aparato de teletransporte. Até então me parecia uma idéia infalível e de uma simplicidade aterrorizante, bastava que meus filhos se comprometessem a passar uma mensagem escrita em um pedaço de papel e o trabalho estava encaminhado.

Tenho que fazer um breve comentário, uma idéia antiga que surgiu, sobre as conseqüências da popularização da viagem no tempo, após viajar razoavelmente pelas várias destinações que o velho continente pode nos oferecer, cheguei a conclusão que com o aparecimento da viagem no tempo o turismo tradicional esta fadado ao desaparecimento, um fato que tomei conta ao adentrar o famoso Colosseo em Roma. Não vou mentir dizendo que não fiquei impressionado, mas fiquei um pouco decepcionado com o seu estado atual, afinal são apenas ruínas datadas de quase dois mil anos, ou seja, nota-se que as ruínas realmente têm dois mil anos, toda a grandiosidade que tal monumento possa ter tido algum dia, simplesmente é eclipsada pelo fato de agora ser apenas um amontoado de pedras razoavelmente ordenadas e destruídas pelo tempo, mas agora imagine visitar o Colosseo em seus dias de glória, assistir aos bravos embates entre gladiadores ao lado de uma multidão tipicamente romana sedenta por sangue. Com a viagem no tempo isso seria perfeitamente possível, e eu seria o primeiro a tentar lucrar com esse fato abrindo imediatamente uma agência de viagens temporais, uma gama infindável de pacotes crono-turísticos estaria à disposição dos mais ávidos viajantes dispostos a correr os riscos e a pagar por esse tipo de turismo nada convencional. Desde batalhas épicas como Willian Wallace comandando os escoceses ou os gregos aportando em Tróia a programas para os amantes da natureza, qual o sentido de viajar a África para observar manadas de zebras se é possível presenciar a fuga de manadas de iguanodontes frente a um ataque de um T-Rex? Quer saber como os egípcios construíram as pirâmides? Dia D? Basta usar a imaginação, turismo de outro nível e de qualidade. Claro que quem quisesse me contatar teria que me achar na Estônia dos anos 50, em pleno pós-guerra, com uma população majoritariamente feminina e ainda inexplorada.

Voltando ao eixo principal, após haver judiciosamente escrito e dobrado esse pedaço de papel, bastava apenas esperar quinze minutos e me dirigir ao local de encontro para um longínquo parente, em grau e tempo, me entregar o tão sonhado aparato, era tudo muito simples, e a idéia realmente me emocionava, iria encontrar um ser do futuro, provar que as viagens no tempo são possíveis e ainda de quebra ter a bugiganga mais legal de toda a face da atual Terra, tudo isso apenas escrevendo três frases num pedaço de papel, realmente é incrível como as maiores idéias são sempre as mais simples.

Os quinze minutos haviam passado, era quase a hora do encontro transtemporal e me dirigi rapidamente para o local especificado, claro que dei uma olhada no pedaço de papel antes para ter certeza que havia corretamente escrito o local e a hora e tive o cuidado de colocá-lo de volta na mochila. Escolhi como local a esquina das instalações da fábrica onde trabalhava, um ponto onde se pode ter uma boa visibilidade e creio que um visitante do futuro não teria problemas para me achar. Bem, nos segundos que antecediam o tão esperado momento não parava de imaginar como seria esse meu parente do futuro e como ele se apresentaria, se chegaria como uma pessoa normal, se faria uma entrada impactante se teleportando ou se simplesmente não apareceria, mas deixaria o desejado aparato em um local onde pudesse recolhê-lo. Os minutos passavam juntos com as minhas esperanças de algum resultado concreto, já havia cinco minutos de atraso, eu sei que nunca fui renomado pela minha pontualidade, mas considerava que no futuro a pontualidade não fosse um problema, ainda mais quando se pode viajar no tempo. Enfim, o resultado final foi um indivíduo perdendo seu tempo, observando o fluxo de automóveis na dita esquina, sem visitante do futuro, sem prova de viagem no tempo e, principalmente, sem o aparato de teletransporte.

Ao voltar para o escritório, percebi o absurdo e a ridicularidade dos meus atos, mas esse sentimento de auto condenação foi rapidamente trespassado por um momento de pura análise lógica, encarei os fatos e vi que não havia razão para tal condenação de minhas ações, afinal, tudo é válido em nome da ciência e de uma balada em uma ex-república soviética. Após sistematicamente seguir uma linha de raciocínio, cheguei a uma conclusão que poderia no mínimo abalar o mundo atual da ciência. O fato de não possuir agora o tal aparato, significava que o meu descendente do futuro não havia viajado, se ele não havia viajado significava na verdade que a viagem no tempo era uma impossibilidade real e concreta, pois o fato de haver transmitido a minha mensagem, o que considero uma verdade absoluta visto a simplicidade de tal operação, implicava em descendentes meus num futuro tão longínquo como se possa imaginar, de posse dessa mensagem, mas impossibilitados de viajar no tempo. Acabara de provar que a civilização humana nunca chegaria a viajar no tempo.

Estava orgulhoso dessa minha conclusão incontestável que certamente deixaria vários fãs de ficção cientifica decepcionados, já estava pronto a começar redigir um artigo e enviar ao conselho científico apropriado, minha teoria era a prova de furos, bem, assim acreditava, ao começar a revisar todos os pontos principais percebi que havia esquecido de um pequeno detalhe, o tipo de detalhe que está tão próximo que acaba por passar ignorado, meus descendentes iriam passar a mensagem claro, no caso de alguns deles não terem outros descendentes, eles sempre teriam irmãos ou primos, também meus descendentes, que fatalmente teriam mais descendentes e passariam o meu pedido, mas se no meu caso, eu não tivesse descendentes, não por alguma casual impossibilidade, porque no pior dos casos, adotaria crianças africanas ou clonaria a mim mesmo, mas se simplesmente eu morresse antes de poder ter algum tipo de filho ou descendente, antes de poder passar tão crucial mensagem.

Tal revelação me pareceu assustadora, existiam duas possibilidades, ou a civilização humana nunca chegará a viajar no tempo, seja dentro dos próximos quinhentos ou dez mil anos, ou ela consegue essa proeza, mas meu descendente não consegue viajar no tempo porque simplesmente ele não existe, eu estava na esquina esperando por um ser que nunca existirá, tudo isso devido a minha morte prematura. A idéia de perder a vida prematuramente me perturbou, como perturbaria qualquer um, eu ainda tinha fé no ser humano e na sua inventividade, por isso a possibilidade mais trágica para mim parecia ser a mais provável.

Eu estava destinado a morrer, ao invés de provar a possibilidade ou a inviabilidade da viagem no tempo, havia provado que iria morrer antes que pudesse passar meus genes, uma idéia nada agradável, tinha que tomar alguma providência, mas como, o futuro já estava desenhado, não podia simplesmente mudar o meu destino, as maiores idéias são sempre as mais simples, assim como as mais idiotas também, acabava de estragar os meus anos restantes de vida. As idéias mais simples, inconformado repetia a mim mesmo, era óbvio, as idéias mais simples, a única coisa que poderia fazer para alterar o meu trágico fim também era a mais simples de todas, acabar com a fonte desse mal anunciado, rapidamente abro a minha mochila, busco o pedaço de papel que iria passar por incontáveis gerações e, num ato de pura libertação, rasgo em pedaços aquela mensagem para o futuro, destruo o objeto que validava toda aquela experiência insana, agora todas as teorias, todas as conclusões, simplesmente, se tornavam formulações lunáticas sem sentido, acabara de salvar minha vida.

Autor: Daniel Keichi M. Leite

2 Comments:

Blogger Unknown said...

O keichi sabe que tu publicou isso?

quinta-feira, julho 05, 2007 3:03:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

Claro que sabe. Eu falei com ele antes e ele me passou o texto. A negociação foi feita através do Orkut.

sexta-feira, julho 06, 2007 9:44:00 AM  

Postar um comentário

<< Home