quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Crise de Identidade

Durante um ato sexual, o macho libera milhões de espermatozóides, dos quais, via de regra, apenas um deles atingirá o único óvulo da fêmea e será fecundado, gerando um novo indivíduo. Imagine a improbabilidade de qualquer um deles conseguir tal feito. Nós que nascemos certamente somos sortudos! (Assim como qualquer outro que tivesse tido êxito em nosso lugar). Pois bem, milhões de células sexuais masculinas travando uma batalha épica por uma única e exclusiva célula sexual feminina. Isso me lembra a história da Guerra de Tróia, onde exércitos inimigos lutavam por causa da linda Helena. Daí concluímos que as fêmeas são muito mais especiais do que machos. Os espermatozóides abundam e milhões são vulgarmente desperdiçados, enquanto que os óvulos são únicos e preciosos e não podem ser perdidos à toa.

Depois que o óvulo é fecundado, inicia-se o desenvolvimento do embrião do que será, um dia, um único indivíduo. Bem, normalmente é o que acontece, daí temos a certeza de que aquele indivíduo é exclusivo, único e tem uma identidade bem definida, não se confundindo com nenhum outro, tem um código genético só dele com uma mistura especial de genes que nenhum outro indivíduo em toda a história do universo possui. Contudo, nem sempre é assim. Acontece que existem casos onde o óvulo divide-se e forma dois embriões (duas massas celulares), dando origem a dois indivíduos geneticamente idênticos, com as mesmas características e inclinações genéticas, seja para doenças, seja para saúde, cor dos olhos, tipo de cabelo, tonalidade de pele, altura, e até mesmo com idênticas influências genéticas em relação a comportamentos. Logicamente que os genes não são determinantes para atributos psicológicos, pois isso também envolve toda a experiência de vida da pessoa, mas definitivamente está cada vez mais sendo comprovado que, em parte (para que isso fique bem claro, repito: em parte), os genes também contribuem com o comportamento dos indivíduos.

Irmãos gêmeos idênticos são casos especiais. Eu, particularmente, tenho três primos que são gêmeos idênticos, ou seja, são trigêmeos. Hoje já são adultos, cada um tem o seu jeito, eles têm profissões diferentes, um é mais magro, outro é mais gordo, cada um tem sua família e seus próprios filhos, mas ainda comemoram o aniversário na mesma data, e um exame de DNA não seria suficiente para distinguir a paternidade dos seus filhos. Também tenho dois amigos de faculdade que são gêmeos idênticos, e não sabemos o que é mais parecido neles: a aparência física ou a inteligência. Tais irmãos, desde que nasceram, tiveram vidas únicas com experiências próprias, o que os tornou diferentes um do outro. Apesar de que gêmeos idênticos, mesmo vivendo separadamente em culturas diferentes, têm a tendência de terem gostos parecidos. Vi um programa de tevê um dia só sobre gêmeos idênticos que tinham sido criados em famílias diferentes, até mesmo em países diferentes. Apesar de toda a separação, ainda eram bem parecidos no jeito de falar e até nos gostos. Tinha um casal de irmãs que trabalhava com a mesma coisa, inclusive na mesma empresa, só que em cidades diferentes. Um caso estranho foi de um casal de irmãos onde um foi criado com a mãe na cultura da Alemanha nazista, enquanto que o irmão foi morar com o pai nos Estados Unidos e foi educado na cultura judaica. Pense! Um deles era racista, porém o outro tinha fotos com coleguinhas negros no colégio. Só se conheceram depois de adultos e viram que, mesmo assim, ainda tinham inúmeros traços idênticos, tanto físicos quanto psicológicos, desde o gosto do sorvete e preferência musical até o tipo de roupa que gostavam de usar e o esporte favorito. Vendo o caso de gêmeos idêntico, mesmo com toda a semelhança, temos a clara o óbvia noção de que se tratam de duas pessoas distintas. São dois indivíduos separados, cada um com sua própria identidade. Até aqui tudo bem.

Meus primos trigêmeos Fábio, Flávio e Fernando no casamento dos meus pais (não me pergunte quem é quem)
Com o advento da tecnologia da clonagem (quem não lembra do primeiro mamífero clonado, a famosa ovelha Dolly?), as pessoas ficaram com receio dessa novidade e acharam que o clone seria um ser estranho que, a princípio, não deveria existir. Todo um cenário de mistério envolveu esse tipo de questão. Alguns religiosos chegaram a dizer que isso seria errado, pois supostamente "o clone não seria uma pessoa e não teria uma alma". Ora, um clone nada mais é do que um irmão gêmeo idêntico. Biologicamente falando, não existe diferença nenhuma entre um par de irmãos gêmeos idênticos e um par de clones, nem mesmo semanticamente falando existe essa diferença. Gêmeos idênticos são clones um do outro. Na questão da clonagem, o que se estaria sendo feito seria estar criando um irmão gêmeo idêntico que, tão somente, nasceriam em época diferentes. Só isso! Nenhuma diferença mais. São dois indivíduos que possuem o mesmo código genético. Não há mistério nenhum nisso. Claro que clonar uma pessoa e fazer com que nasça um bebê que seja irmão gêmeo idêntico do original pode provocar talvez problemas psicológicos nas pessoas e nos indivíduos envolvidos e certamente que isso deve ser debatido por um conselho de ética. Mas um clone é um indivíduo tanto quanto qualquer outro. Não há nada de estranho ou misterioso num clone. Inclusive, alguns insetos reproduzem-se pelo processo de clonagem: simplesmente o indivíduo reproduz-se sozinho e têm um bocado de filhotes que possuem precisamente (salvo algumas raras mutações casuais) o mesmo código genético do original. Enfim, um clone humano seria uma pessoa normal. Voltando ao assunto, mesmo assim, teríamos a patente noção de que trata-se de um outro indivíduo com uma identidade única formada pelas experiências pessoais e exclusivas de sua vida.

Agora vamos começar a complicar um pouco a questão e entrar no mundo da ficção científica. Alguns filmes abordaram o tema de clonagem. Um deles é o filme "O Sexto Dia" onde existe um tráfico de clones que são feitos para substituir os indivíduos originais que tenham sofrido algum acidente. A trama é mais ou menos a seguinte. O processo de clonagem está consolidado na sociedade, mas apenas para animais de estimação. Um grupo ambicioso começa a ganhar dinheiro usando o processo em humanos. Nesse processo de clonagem, é possível copiar toda a memória do indivíduo original e implanta-la no clone. Então empresários dos esportes, por exemplo, contratam esse grupo como uma forma de "seguro", onde os seus jogadores que sofrerem lesões são sumariamente substituídos por clones intactos, instantâneos e que possuem a mesma habilidade física e a memória do original. O indivíduo original é assassinado sem choro nem vela. O processo é tão perfeito, que nem mesmo o clone sabe que é um clone. Tendo a mesma memória do original, simplesmente age como se nada tivesse acontecido, achando que a vida que está levando sempre foi a sua, no seu trabalho de sempre, na sua família, nem mesmo a família pode notar a diferença. De fato, não há. De todo jeito, será que não é ele mesmo? (Outro filme onde é abordado um assunto parecido é o filme "A Ilha")

Considerando esse cenário fictício, onde pudéssemos produzir um clone, acelerar o seu crescimento para a mesma idade do original em poucas horas e que pudéssemos copiar a memória de um indivíduo para o outro. Enfim, o clone é ou não é o mesmo indivíduo? Ficamos entendidos que uma pessoa difere da outra por causa das experiências de vida que teve, apesar de poder ter o mesmo código genético. Mas nesse caso, ambos os indivíduos além de possuírem o mesmo DNA também possuem as mesmas experiências. O que é feito no filme é que normalmente o original é assassinado para evitar qualquer problema. Mas e no caso de ambos continuarem vivos? Cada um dos dois indivíduos tem as mesmas memórias, o mesmo DNA, enfim, a mesma experiência de vida. A única diferença é que um dos corpos realmente participou de todos os eventos durante a vida e o outro corpo apenas recebeu uma cópia exata de tudo que se passou. Será que o fato do corpo original ter estado em todos aqueles momentos o faz mais merecedor do status de identidade verdadeira? Acho que não. No meu entendimento, o clone tem os mesmos direitos e deveres do original. Pensem bem, ambos conhecem as mesmas pessoas, possuem as mesmas habilidades, têm as mesmas lembranças, tem o mesmo emprego, amam os mesmos filhos. Tipo assim, praticamente são a mesma pessoa. Só que a mesma pessoa duplicada. Certamente que a partir do momento da duplicação, cada um dos indivíduos vai ter novas experiências exclusivas, o que fará com que sejam cada vez mais diferentes e montem uma identidade única, pelo menos parcialmente.

Na verdade, eu ainda nem comecei a crise de identidade que estou querendo discutir. Bem, como eu disse, no filme, o indivíduo original é assassinado, enquanto que o clone ocupa o seu lugar. Independente de qualquer confusão sobre "Quem é quem?" e "É a mesma pessoa ou não?" (De certa forma, eu acho que é!), ainda existe outro problema: a pessoa morreu ou não? Se pensarmos do ponto de vista do indivíduo, acho que fica bem claro que quando o corpo morre, o indivíduo não terá mais vida e nem mais nenhuma experiência futura. É notável que o clone é um outro indivíduo separado do original. Tipo assim, eu sei que se esse cenário hipotético acontecesse comigo, eu fosse clonado e dessem um tiro na minha cabeça eu estaria morto. O clone continuaria vivendo sua/minha vida tranqüilamente, mas eu, euzinho, eu mesmo não estaria mais vivo. Do ponto de vista das outras pessoas, sabendo que não se pode diferenciar nem fisicamente e nem psicologicamente o clone do original, é como se eu não tivesse morrido. O clone, estando no meu lugar, conheceria as mesmas pessoas, contaria as mesmas piadas, lembraria dos mesmos eventos, trabalharia no mesmo lugar que um dia foi meu (e escreveria no mesmo Blog). De fato, nem mesmo ele poderia dizer que não era eu. Ele seria eu. Para ele, ele sou eu. Afinal, eu morri mesmo? Se existe um corpo com o meu DNA e as minhas experiências, não sou eu? Acho que ele sou eu sim. A questão é que seria "eu" de certa forma (para os outros), mas não seria "eu" pessoalmente falando. Dá para entender? Verei se explico melhor.

Quando eu acordo todos os dias e me olho no espelho, eu vejo um indivíduo e sei que sou eu. Eu tenho a nítida impressão de que tenho uma identidade pessoal e tenho a sensação de que sou um ser vivo. Se eu fosse substituído por um clone, como sugerido acima, eu não acordaria mais, pois estaria morto. Mas o meu clone acordaria e sentiria exatamente a mesma sensação de ser eu, de estar vivo. Tudo bem, aqui eu sei que eu morri e fui substituído, eu não terei mais experiências, a minha identidade pessoal acabou, acabou a vida, acabou as sensações, não sentirei mais nada, aquele clone é outro ser que, apesar de ter a mesma memória que eu, tem suas próprias sensações. Ok! Nesse cenário hipotético, acho que dá para entender que eu realmente morri. Agora tem outro cenário que eu já pensei bastante e até agora não consegui saber se eu morri ou não. Vamos a ele.

A nanotecnologia é outro fenômeno que está tomando de conta do mundo. Chips cada vez menores e mais potentes são produzidos para executar as mais variadas tarefas. Num livro que li chamado "The Fuzzy Future" (O Futuro Nebuloso) de Bart Kosko, no finalzinho do livro, o autor sugere que talvez partes do cérebro pudesse ser substituídas por chips de forma bem gradual. De fato, hoje em dia, pessoas já usam chips no cérebro para exercer funções perdidas (por exemplo, implante coclear para surdos). Minha proposta é a seguinte: imaginem se existisse um chip que pudesse fazer exatamente as mesmas funções de certa parte do cérebro. Se existisse tal chip, e pudéssemos substituir parte do nosso cérebro por ele, quais seriam as implicações? Imaginem que, como no filme, pudéssemos copiar tudo que existisse em uma parte de, digamos, 1% do nosso cérebro, colocar nesse chip, fazer uma microcirurgia, cortar esse 1% do nosso cérebro e substituir pelo chip. Consigo imaginar-me indo para a cirurgia, recebendo uma anestesia, sendo operador pelos médicos e, depois de algum tempo, acordaria numa cama de hospital, perfeitamente recuperado do procedimento. Dá para imaginar que ainda sou eu, Juliano. Eu me levantaria da cama e não sentiria nenhuma diferença, afinal aquele chip substituiu perfeitamente aquele meu 1% do cérebro. Ok, estou vivo, sou eu mesmo.

Agora vamos ver o que isso poderia implicar se continuássemos com isso. Imaginem agora, que eu fizesse uma outra cirurgia para substituir outro pedacinho do meu cérebro (Pessoal, não estou reclamando do meu cérebro, eu gosto muito dele e não quero que ele seja cortado, isso é apenas uma hipótese. Ok?). Agora eu substituiria outra parte de 1% por outro chip com as mesmas funções. O mesmo aconteceria, eu acordaria depois da cirurgia como se nada tivesse acontecido, ainda sou eu, beleza, lembro de tudo que eu lembrava, minha memória não foi afetada, minhas habilidade (seja quais forem) continuam as mesmas. Limpeza! Só que agora tenho 2% de cérebro artificial e o resto biológico. E se eu continuasse, gradualmente e cumulativamente fazendo novas intervenções, substituindo cada vez mais outras partes do meu cérebro por chips super tecnológicos, o que isso significaria? Ninguém notaria a diferença, o indivíduo continuaria sendo o mesmo, inclusive eu ainda seria eu. Será? E se chegasse num momento em que eu já tivesse completado 100% de cérebro substituído? Foi tão gradual que, particularmente, o indivíduo em questão não perceberia nada de diferente, e nem as outras pessoas. Mas ainda seria eu? Eu, por acaso, morri durante o processo? Quando? Aos poucos? Sinceramente eu não sei. Certamente que ainda existiria um corpo sendo comandado por um cérebro artificial que, na prática, seria eu. Isso é extremamente estranho.

Enfim, o que garante a minha identidade pessoal? Quando nos olhamos no espelho, o que nos garante que não somos apenas um "computador" super complexo que age de acordo com toda a história que se passou com aquele corpo e que guardou todos aqueles estados em seus neurônios? Eu acho que, de certa forma, somos isso sim. Mas isso é muito estranho. É como se eu não existisse. Como se cada dia fosse um novo ser que age como se houvesse uma identidade fixa. Quem garante que eu não sou um clone cuja memória foi copiada de outro corpo? Sei que não somos tão tecnológicos assim, e nem sei se isso será possível algum dia (acho bastante improvável). Mas se fosse possível, tal clone ou robô seria a própria pessoa ou não? E se, por acaso, conseguíssemos clonar Einstein a partir de um DNA recuperado de seu corpo e, de alguma forma (se fosse possível na época), tivéssemos gravado toda sua memória e copiado para o seu clone, este indivíduo seria o Einstein? Certamente que ele se sentiria como tal, e poderia até a resolver os problemas da física moderna e descobrir um pouco mais sobre as leis da natureza. Seria ele? Puxa vida, isso perturba muito a minha cabeça.

No filme "Vanilla Sky" o personagem principal morre, é congelado e, num futuro distante, seu corpo é ressuscitado. É o mesmo cara? É outro? Será que é o mesmo somente porque é o mesmo corpo e os mesmos neurônios? Qual a diferença disso e de clonar o Einstein e copiar sua memória? Não vejo diferença nenhuma. Qual a diferença de substituir logo 100% do meu cérebro por um mega computador ou então ir substituindo gradativamente a cada 1% por um novo chip? Definitivamente, esquisito! Quem sou eu? Conversando com um amigo sobre isso, chegamos à conclusão de que trata-se de mais um paradoxo existencial insolúvel. Foi mal!

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

...E foi um longo processo para a conclusão de que era um paradoxo.

sexta-feira, janeiro 26, 2007 12:51:00 AM  

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