quarta-feira, 7 de fevereiro de 2007

Realidade Escondida

No próximo dia 11 de Fevereiro, os portugueses estarão participando de um referendo no seu país para responderem a polêmica e delicada pergunta: "Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas primeiras dez semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?". É uma questão extremamente delicada e provoca as mais diferentes opiniões. O aborto ou interrupção voluntária da gravidez (IVG) é um problema social. Não temos como escapar dessa dura realidade. Devemos tratar do assunto com bastante cuidado, pois sendo uma questão de vida ou morte, não estamos procurando vencedores ou vencidos, mas uma tentativa para solucionar ou, no mínimo, amenizar o problema.

A prática do ato é considerada como crime previsto em lei na maioria dos países. Inicialmente, temos que diferenciar bem duas coisas: (1) o aborto e (2) a criminalização do aborto. O referendo que vai acontecer em Portugal não é sobre quem é a favor ou contra o aborto, mas apenas sobre quem é a favor ou contra sua criminalização, ou seja, se o ato deve ser considerado um crime. Sobre o primeiro ponto, o aborto, convém dizer que é um grande drama e ninguém gostaria de se sujeitar de tal procedimento. Seria descabido, por exemplo, dizer que uma mulher acha prazeroso fazer isso ou que seja algo ótimo para se fazer num final de semana. Nenhuma mulher que fez ou tentou fazer o aborto gostou da experiência. Um aborto é um procedimento invasivo e traumático, além de gerar traumas psicológicos muitas vezes incuráveis. Por esse motivo e tantos outros, falar em "banalização" do aborto é algo insensato. Alguns filmes interessantes que tratam o assunto são "O Crime do Padre Amaro" e "Regras da Vida".Eu, particularmente, sou contra o aborto, porém sou favorável a sua despenalização. E por despenalização entende-se que, a partir do momento em que não há uma pena, a justiça deixa de perseguir a mulher que aborta e já não será acusada em tribunal. Vou expor alguns argumentos que considero que explicam bem essa posição.

O aborto é uma realidade social que nem a sociedade nem o Estado podem ignorar. No Brasil já tornou-se uma questão de saúde pública. O Estado deveria encontrar um meio de apoiar a vida, não apenas do nascente, mas também da mãe. O penalista Jorge Figueiredo Dias escreveu, num contexto mais amplo: "O Estado não pode eximir-se à obrigação de não abandonar as grávidas que pensem em interromper a gravidez à sua própria sorte e à sua decisão solitária (porventura na maioria dos casos pouco informada); antes deve assegurar-lhes as melhores condições possíveis de esclarecimento, de auxílio e de solidariedade com a situação de conflito em que se encontrem. Sendo de anotar neste contexto a possibilidade de vir a ser considerada inconstitucional a omissão do legislador ordinário de proporcionar às grávidas em crise ou em dificuldades meios que as possam desincentivar de levar a cabo a interrupção.". Um amigo meu, Luiz Fabris, colocou a questão de forma bem clara: "Sejamos sinceros, quando pensamos em aborto, normalmente pensamos em mulheres de classe média ou rica, indo à clínicas clandestinas, com o aborto sendo realizado por algum médico ou outro profissional da saúde. Isto está longe da realidade. A realidade é muito mais dura. No Brasil, a estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) é que sejam realizados cerca de 4,5 milhões de abortos por ano. A esmagadora maioria é realizada pela própria mulher, em locais infectos, utilizando-se instrumentos infectados ou medicamentos clandestinos. As conseqüências ginecológicas vão desde mal estar profundo até esterilidade completa ou sepse pós-aborto, geralmente com conseqüências fatais (ocorrem cerca de 6.000 mortes por abortamento séptico por ano). Não acredito que exista nenhum profissional da saúde digno desse nome que seja favorável ao aborto como método de evitar concepção. Entretanto, a criminalização do ato é que contribui para sua manutenção. A esmagadora maioria dos abortos são realizados por mulheres de classe C ou D, geralmente jovens de 12 à 17 anos, com baixo grau de escolaridade, que apresentam analfabetismo funcional e não tem acesso à métodos anticoncepcionais (que são necessários à mulheres cada vez mais jovens). Se a mulher que realiza o aborto no banheiro do barraco pudesse ser atendida por um serviço de saúde, haveria, no mínimo, a oportunidade de se fornecer educação quanto a métodos anticoncepcionais e se evitaria os efeitos pós-aborto.".

Repito mais uma vez, para que fique bem claro, que não sou favorável ao aborto como método de evitar a gravidez indesejada. O que sou favorável é à descriminalização do ato, para que se possa fazer uma correta redução de danos e permitir que seja realizada uma educação quanto ao tema "anticoncepção". Por quê uma menina que fez um aborto iria a um posto de saúde? Para ser presa? A lei brasileira atual, que considera o aborto como crime é absolutamente inócua, ineficaz, não inibe crime algum e tende a mascarar o problema (escondendo a realidade), uma vez que não se pode fiscalizar a ocorrência do "crime". A existência da lei não impede os 4,5 milhões de abortos por ano, a maioria dos quais realizados em banheiros de barracos de favelas, pela própria mulher (ou menina), usando ou medicamentos ilícitos (o que provoca um enorme risco) ou usando agulhas de tricô ou crochet (o que pode levar a infecções uterinas fatais). Algumas contribuições da lei de penalização do aborto são as seguintes: (1) para que a paciente venha a morrer por conseqüência do aborto (aproximadamente 6.000 casos por ano), (2) para a manutenção da industria clandestina lucrativa dos aborteiros (um aborto clandestino custa por volta de R$ 3.000,00 e apenas atendem as classes mais ricas) e (3) para a venda de medicamentos ilícitos. A descriminalização do ato, por outro lado, permitiria uma melhor educação sobre anticoncepcionais, o aborto poderia ser realizado pelo SUS (Sistema Único de Saúde - o único sistema de saúde disponível para mais de 80% da população brasileira) sem custo para a paciente, além de evitar mortes, a esterilidade precoce, e acabar com a industria clandestina dos aborteiros de plantão (vulgo açougueiro). Um problema adicional: segundo a FEBRASGO (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) os abortos vêm sendo praticados por meninas cada vez mais jovens, não sendo raros os casos de meninas com 13 anos que já praticaram abortos diversas vezes, onde muitas vezes, também, o pai do bebê é um parente (primos, irmãos, tios e até pais da própria menina).

Problemas tipicamente sociais não podem ser resolvidos apenas por força de lei. No caso do aborto, a legislação o proíbe desde as primeiras constituições brasileiras (desde a proclamação da independência). Um caso típico de ineficácia da lei, justamente porque ela não ataca a raiz do problema. Além do número de abortos aumentarem a cada ano, a idade das mulheres que o praticam diminui cada vez mais. O aborto não será eliminado se insistirmos em jogar o problema para baixo do tapete. Se o aborto fosse despenalizado, a menina procuraria o serviço público e seria orientada sobre métodos anticoncepcionais. Isso diminuiria bastante o número de possíveis futuros abortos, pois elas aprenderiam como evita-los. Palestras sobre métodos anticoncepcionais, que já ocorreram, permitiram uma redução nos processos de laqueadura em mais de 30%, por exemplo. Existem alguns remédios muito eficazes para se acabar com os abortos: educação, informação, conversa e, principalmente, acolhimento. Algo semelhante a essa redução de danos foi feita em relação aos viciados em drogas injetáveis. Eles compartilhavam seringas e se contaminavam com AIDS e outras doenças. Quando as seringas passaram a ser distribuídas pelas secretarias de saúde de alguma cidades, a AIDS praticamente desapereceu nesse público.

Outro detalhe interessante para ser levado em conta é que quem primeiro propôs a descriminalização do aborto foram, justamente, os profissionais da área de saúde, que estavam cansados de ver meninas morrendo de infecção uterina ou com sangramentos que duram semanas. Também é bom lembrar que em todos os países em que o aborto foi descriminalizado, a realização de abortos caiu de forma drástica. Como ainda comenta esse meu amigo: "Hábitos não se combatem com leis, mas com novos hábitos. Em 1917, um grupo de puritanos religiosos teve uma "brilhante" idéia: colocar o hábito de consumir bebidas alcoólicas fora da lei. A lei entrou em vigor em 1919 e deu um resultado imediato: o surgimento de grupos que faziam o contrabando de bebidas. Com esses grupos vieram aumentos exponenciais de crimes como estímulo à prostituição, assassinatos, jogo ilegal e tráfico de drogas. A lei havia esquecido de proibir a vontade de beber. Em 1933, Roosevelt acabou com essa idiotice e isso foi praticamente o fim de muitos dos grupos de crime organizado nos EUA. O mesmo acontece com o aborto. Lei nenhuma elimina a necessidade da menina praticá-lo!". Como disse a professora Samantha Buglione: "Descriminalizar o aborto não significa promover o aborto, mas significa perceber que a via penal não é a melhor forma de tratar a questão... Do ponto de vista prático, a criminalização do aborto, além de não proteger a vida do feto, gera a morte de mulheres e gastos desnecessários para o Estado."

3 Comments:

Anonymous Anônimo said...

Me lembro q qdo estava no colegio assiti a um video sobre aborto no qual passava cenas do pior metodo: o de sucçao. Ha passado quase 15 anos e o metodo continua o mesmo. Apenas esta mais violenta, com uma mini-bomba de sucçao 29 vezes mais forte q um aspirador caseiro. É uma questao dificl sobretudo visto de varios angulos, seja politico, social ou cientifico. Mas lembramos que seja qual for nossa opiniao somos apenas um mero espectador da dor alheia. Como vc disse a descriminalizaçao seria uma boa via pra resolver o tema. Mas tampouco vamos colocar pano quente e popularizar a coisa. Sou de acordo com um pre-estudo antes de qualquer decisao final. Apesar de que alguns consideram vida so apos alguns meses, enquanto outros consideram apos o concebimento o feto-ovulo-zigoto deve ser respeitado ante tudo.

sexta-feira, fevereiro 09, 2007 6:14:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

A questão é que o aborto deve ser tratada como um problema de saúde pública e não como um problema criminal. Desta forma, poderia ser melhor resolvido. Saca? Esses métodos caseiros e brutais que você comentou, como o do super-aspirador (que coisa hein!) ocorrem por causa da criminalização. Claro que o povão desinformado vai usar os piores métodos e mais grosseiros como esse para praticar o aborto. Se fosse feito por um médico qualificado do sistema de saúde, evitaria muitas mortes desnecessárias, sem dúvida. Não podemos continuar escondendo esse problema. As meninas que fazem aborto são ensinadas pelas próprias irmãs mais velhas que já fizeram abortos caseiros. Não estou falando sobre "popularizar" a coisa, mas apenas trazer para às vistas do serviço médico, até para haver uma melhor orientação e evitar futuras gravidez indesejadas e possíveis novos abortos. O problema é que não pensamos na situação da mulher, a que acaba sofrendo mais. Se ela for tratada como criminosa e não receber apoio do Estado, nada será resolvido, agora se ela for acolhida com carinho, amor e principalmente orientada, pode evitar muito sofrimento desnecessário. Pelo que eu andei estudando sobre o assunto, só tem 15 casos de mulheres presas por aborto aqui no Brasil, isso num universo de 4.5 milhões de abortos por anos. Essa lei não resolve nada, não diminui as ocorrências e só esconde a realidade. Aliás, esse "crime" não pode ser detectado, daí a ineficácia da lei. Como o Estado vai vigiar o que ocorre num banheiro infecto de barraco de favela? Como eu disse, são os próprios profissionais da saúde que sugerem a despenalização do aborto. "Pano Quente" é essa lei, que esconde a realidade e não traz solução. Acho que não deve ser coincidência que nos países onde o aborto foi despenalizado, sua ocorrência caiu para praticamente ZERO.

sábado, fevereiro 10, 2007 3:24:00 PM  
Anonymous Anônimo said...

Notícia de última hora: "SIM" ganhou em Portugal, ou seja, o aborto foi despenalizado. O "sim" obteve 59,3% e o "não" obteve 40,7%. "Finalmente, as mulheres vão ser tratadas com o respeito e a dignidade que merecem", afirmou Maria José Alves, mandatária do movimento "Médicos pela Escolha". Um colega, Carlos Esperança, que é portugues, disse: "Em primeiro lugar foi uma vitória das mulheres que se libertaram da clandestinidade e dos riscos que lhe estavam associados: perigo de vida, perseguições judiciais, devassa da vida íntima e humilhações cruéis... Há agora condições legais para ajudar as mulheres e evitar o recurso à praga do aborto, para relançar uma política de apoio à maternidade, sem a impor, para que a gravidez ou a sua interrupção sejam medicamente assistidas e não policialmente vigiadas.".

segunda-feira, fevereiro 12, 2007 11:41:00 AM  

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