sexta-feira, 29 de dezembro de 2006

Leseira Humana

"Existem apenas duas coisas infinitas - o Universo e a estupidez humana. E não tenho tanta certeza quanto ao Universo." (Albert Einstein)

Se Einstein tivesse nascido no Brasil e fosse nordestino, certamente não teria usado palavras tão requintadas como "estupidez". Provavelmente teria dito "leseira" mesmo.

A leseira caracteriza-se quando um indivíduo encontra-se numa certa situação, tal que, aos olhos dos outros, aparenta ser um completo idiota. Neste caso, ele seria chamado de "leso" ou "lesado". Na definição do doutor em lingüística Sérgio Freire, temos: "Leseira é um abestalhamento momentâneo que acomete o leso.". A frase que tal indivíduo mais escuta é a seguinte: "Deixa de ser leso!". Apesar das causas mais cotidianas da leseira serem coisas como mal-entendidos, sonolência, incapacidade mental, falta de prática de reflexão, pressa e teimosia, certamente uma das maiores causas é a ignorância.

O ser humano, que surgiu tão recentemente neste planeta (a espécie Homo sapiens tem pouco mais de 150 mil anos), já conseguiu ser tão lesado que por pouco [ainda] não causou a própria destruição, e mesmo assim já fez muito estrago. Apesar das inúmeras trapalhadas, acha-se o supra-sumo da inteligência planetária (e em alguns casos, da inteligência universal). Douglas Adams, no seu "Guia do Mochileiro das Galáxias", explica: "Por exemplo, no planeta Terra os homens sempre se consideraram mais inteligentes que os golfinhos, porque haviam criado tantas coisas – a roda, Nova York, as guerras, etc. –, enquanto os golfinhos só sabiam nadar e se divertir. Porém, os golfinhos, por sua vez, sempre se acharam muito mais inteligentes que os homens – exatamente pelos mesmos motivos.".

Outras espécies anteriores já foram bastante destrutivas. Lembremo-nos dos primórdios da vida na Terra, há aproximadamente 3,8 bilhões de anos. Desde então e durante os 3 bilhões de anos seguintes, apenas seres unicelulares existiam (basicamente bactérias – parece que elas não se importavam muito com trabalho em equipe). A primeira grande crise de poluição global ocorreu há aproximadamente 2,3 bilhões de anos por causa de seres unicelulares chamados Estromatólitos (tão pequenos, porém tão destrutivos). Na época, foram verdadeiros vilões, pois começaram a produzir um gás tão venenoso que quase extinguiu toda a vida da Terra. E esse gás era, nada mais nada menos do que... o oxigênio. Naqueles tempos, oxigênio era uma raridade (menos de 1% dos níveis atuais) e nenhum ser ainda conseguia respira-lo. Os estromatólitos então introduziram esse gás rapidamente na atmosfera e causaram uma crise de proporções globais, pois o oxigênio é um destruidor poderoso de compostos orgânicos e até hoje muitas bactérias são destruídas por ele. Pode parecer estranho chamar isso de uma "crise de poluição global", mas quando os habitantes do planeta são todos bactérias anaeróbicas (que não respiram oxigênio), é melhor gritar por socorro.

Em um dos ramos da árvore da vida, os organismos tiveram que desenvolver métodos bioquímicos para reter o oxigênio, onde um desses métodos foi a respiração aeróbica, estes sobreviveram, multiplicaram-se e hoje, o oxigênio é o ar que respiramos. Nada melhor do que umas mutações favoráveis sendo selecionadas gradual e cumulativamente pela seleção natural. Paralelamente, outros ramos da evolução unicelular continuaram no velho estilo de vida anaeróbico e hoje, ao menor sinal de oxigênio, costumam morrer. Os vilões estromatólitos pelo menos não fizeram isso intencionalmente, o que já é um atenuante para eles.

Outras ondas de destruição em massa são causadas pelo revés cósmico quando asteróides desgarrados atingem o nosso vulnerável planeta. Foi assim que a dinastia dos dinossauros, que já perdurava mais de 160 milhões de anos, terminou há 65 milhões de anos quando um bólido com um tamanho aproximado de 10 quilômetros de diâmetro atingiu a península de Yucatán no México criando uma cratera de 170 quilômetros de diâmetro e levantando poeira o suficiente para escurecer a Terra por vários anos o que levou a extinção dos dinossauros dentro de alguns milênios. Impedindo a passagem da luz solar, muitas espécies de vegetais morreram, eliminando a fonte alimentícia dos dinossauros herbívoros e, consequentemente, sem a carne dos herbívoros para comer, os carnívoros acabaram morrendo também.

Mais recentemente, um outro asteróide atingiu em cheio o planeta, e esse asteróide é o Homo sapiens. No seu livro “O Fim da Evolução” (extinções em massa ocorrem rotineiramente nas eras geológicas sendo “o fim da evolução” para muitas espécies, contudo também sendo uma ótima oportunidade e início de evolução para tantas outras), o paleontólogo Peter Ward comenta sobre as três principais extinções em massa que houveram, e ele chama-as de “Os três eventos”. O primeiro evento sendo conhecido como a Extinção do Permiano que ocorreu há 250 milhões de anos, varrendo mais de 90% de todas as espécies de vida que existiam na época. O segundo evento sendo a Extinção K-T, acabando com mais de 50% das espécies, inclusive os dinossauros. E o Terceiro Evento está ocorrendo nesse exato momento, e agora os culpados somos nós, os humanos.

Sobre isso, o paleontólogo Stephen Jay Gould afirma: “O ritmo da extinção das espécies provocada pela rapacidade humana pode atualmente equivaler ao rítmo da perda nos grandes eventos de extinção em massa que pontuaram a história da vida.”. E Timothy Ferris diz: “A atual extinção das espécies pela mão do homem é um crime que a posteridade considerará mais pernicioso do que a queima da biblioteca de Alexandria.”. Obviamente que a destruição de bibliotecas com séculos de conhecimento humano acumulado foi uma perda irreparável, mas desta vez, estamos perdendo vidas, e não apenas as nossas.

Nossa falta de entendimento sobre as necessidades globais e sobre o nosso papel na natureza atrapalha enormemente o andamento da vida planetária, da qual fazemos parte. Deveríamos pensar a longo prazo e não sermos tão imediatistas consumindo o máximo de recursos naturais em intervalos de tempo tão curtos. Florestas inteiras já foram derrubadas, bilhões de toneladas de combustível fóssil poluente são queimados diária e inconseqüentemente, desequilibrando fortemente a economia natural. Já levamos a extinção inúmeras espécies diretamente com as nossas próprias mãos (o indefeso dodô que o diga), e tantas outras de forma indireta através das nossas trapalhadas. Colonizamos ilhas e continentes, poluímos rios e mares, modificamos o meio-ambiente, misturamos animais estranhos levando ao extermínio descontrolado e mútuo entre eles.

A teia da vida é uma enorme rede emaranhada e fortemente conexa, costurada ao longo de milhões de anos e que se puxarmos um fio inadvertidamente, podemos colocar tudo a perder. Um verdadeiro efeito-borboleta onde pequenas causas iniciais criam grandes efeitos em ondas de choque que vão se propagando ao longo do tempo levando a conseqüências absolutamente imprevisíveis.

Não podemos evitar a colisão de asteróides, a destruição provocada por tsunamis e terremotos ou a erupção de vulcões, mas podemos evitar o nosso egoísmo e ganância. Temos capacidade para isso, basta agora usa-la. Estamos na nossa adolescência tecnológica e o nosso descontrole é muito grande. Já sabemos de muitas coisas, enquanto que outras ignoramos por completo. Parece que ainda não entendemos que nós somos natureza também (ver texto “Ilusão de Separação”) e que destruí-la trará problemas para nosso próprio viver. A “Vingança de Gaia” está batendo as portas como previu o cientista ambiental James Lovelock na década de 1970 com a sua “Hipótese de Gaia”, onde ele afirma que o planeta comporta-se como um organismo vivo. Temos o dever de cuidar de sua saúde, melhor dizendo, da nossa própria saúde.

Sem dúvida nenhuma a nossa espécie é a mais agressiva e virulenta que esse planeta já conheceu. Estamos usando muito mal os recursos naturais de forma desequilibrada e não pensando nas conseqüências. E também temos o conhecimento e tecnologia para provocarmos uma guerra nuclear o que acabaria conosco e com quase todas as espécies do planeta, além de deixar o planeta estéril por um bom tempo. Devemos usufruir da natureza, com certeza, mas com sabedoria. De forma nenhuma quero que destruamos o ar que respiramos, os oceanos onde nadamos e nem as terras que plantamos. Quero muito que consigamos sobreviver e reverter esse quadro que está se formando de aquecimento global e extinção em massa. Desejo e incentivo que tomemos uma atitude diante do que está acontecendo, assinando tratados ecológicos, preservando o meio-ambiente, não poluindo o planeta, e tentando limpar a sujeira que fizemos.

Isso me faz lembrar também de outra frase de Douglas Adams que cabe bem nesse cenário: "Um número cada vez maior de pessoas acreditava que havia sido um erro terrível da espécie descer das árvores. Algumas diziam que até mesmo subir nas árvores tinha sido uma péssima idéia, e que ninguém jamais deveria ter saído do mar.".

Já que nossos ancestrais saíram do mar e conquistaram a terra, depois subiram nas árvores e finalmente desceram delas para conquistar as savanas africanas e, consequentemente, o mundo inteiro, não os decepcionemos. Que deixemos de ser "lesos" e mudemos de postura então, antes que seja tarde demais. Já que vamos com certeza ser extintos mesmo algum dia (assim como qualquer espécie), que não antecipemos esse dia, pelo menos.

quarta-feira, 20 de dezembro de 2006

Saudades Desencontradas: Tributo à Carl Sagan

Nossa vida é um conjunto de encontros e desencontros fortuitos, muitas vezes por questões espaciais e outras vezes por questões temporais. Pessoas que irão influenciar nossa vida de forma significativa só nascerão daqui há dez anos, enquanto que outras já morreram faz uma década.

Sou cinéfilo de carteirinha. Em uma de minhas caminhadas pelas locadoras da vida, no final de 2004, conheci o astrônomo Carl Sagan. Infelizmente não foi um encontro cara-a-cara onde eu poderia ter apertado sua mão, pois além dele nunca ter morado na cidade onde vivo ou ter freqüentado as mesmas locadoras que eu, ele já havia morrido há alguns anos. Na verdade eu nem sabia quem ele era. Na época, um mero desconhecido. É tanto que o que me atraiu inicialmente não foi a sua pessoa, mas a sua obra.

Tinha uma locadora perto da minha casa que estava num processo de modernização. Explico melhor: estava se desfazendo de todos as suas fitas VHS e substituindo-as gradativamente por DVDs. E essa substituição se dava na venda de todos as suas fitas VHS a preço de banana e com a conseqüente compra de DVDs. Qualquer um que quisesse poderia ter em sua casa, a baixos custos, títulos dos mais variados desde filmes infantis para as crianças, filmes de ação, ficção e também documentários, só que tudo isso na velha e obsoleta tecnologia do VHS. O tamanho de uma fita dessas não é muito apropriado para se guardar em casa, mas o preço era muito chamativo. Se não me engano, tinham alguns títulos que custavam R$ 10,00 e outros R$ 5,00. Todas as locadoras da cidade estavam fazendo isso e no final o preço baixou até R$ 1,00.

Correndo os olhos pelas prateleiras na busca de comprar algum título famoso, vi algo que me chamou a atenção repentinamente. Uma série chamada "Cosmos" enfileirada num canto esquecido da locadora. Eram várias fitas e cada uma com um episódio da série. Eu nunca tinha ouvido falar daquela série. Dei uma olhada meio desinteressada e li algumas sinopses. Vi que era sobre astronomia e que tinha sido produzida há quase 25 anos, no início da década de 1980, por um tal de Carl Sagan. Como eu gostava de material que falasse sobre o universo e o preço estava bom, acabei escolhendo um episódio que eu achava que iria ser interessante e comprei. Peguei o "Episódio 9 - A Vida das Estrelas - Nascimento, vida e morte das estrelas.". Chegando em casa guardei junto aos meus outros filmes para assistir depois.

Lá em casa tínhamos um aparelho novo de DVD e um videocassete velho. A preferência sempre foi do DVD e este ficava conectado na televisão continuamente. Nessa época as locações ainda tinham títulos bem distribuídos entre VHS e DVD, mas como o DVD estava tomando conta do mercado, dificilmente alugávamos um filme em VHS. Então pensei que quando fosse o caso de desligarmos o DVD e conectarmos o videocassete, eu poderia assistir aquele documentário.

Uns três ou quatro meses depois, tendo ignorado completamente nesse intervalo de tempo a existência daquela fita do "Cosmos" que eu tinha comprado, alugamos um filme em VHS. Então, numa tarde preguiçosa de sábado, como o videocassete já estava conectado na televisão, resolvi dar uma chance ao "Episódio 9". Enquanto minha querida esposa Ana dormia na cama, eu, deitado ao seu lado, assisti aquele velho VHS empoeirado.

A abertura do episódio começava com uma frase: "Cosmos – Uma Jornada Pessoal" ao som de uma linda e tranqüilizante sinfonia musical. A primeira frase do episódio me impressionou muito: "Se você deseja fazer uma torta de maçã do nada, você deve primeiro inventar o Universo.". Era um documentário sobre o nascimento e morte das estrelas e explicava como eram formados os átomos e como existe toda uma conexão entre todas as coisas. Tinha a duração aproximada de 50 minutos. O narrador e apresentador era o próprio autor, Carl Sagan.

Com toda sua poesia e explicações bem compreensíveis que lhes são características, Carl fez com que minha atenção e empolgação aumentassem cada vez mais e meus olhos fitavam naquele maravilhoso universo de conhecimento. E o entusiasmo com que ele apresentava era contagiante. Para descrever o que aconteceu comigo, uso uma expressão que escutei de um querido amigo: "Mind Blowing Experience!". Foi uma verdadeira experiência de estourar os miolos, literalmente.

A partir de então é como se tivesse acendido uma chama dentro de mim para que eu realmente percebesse o quão interessante, intrincado e magnífico é o nosso universo. E como é estimulante estudar e aprender sobre ele. Poderíamos até descrever esse sentimento como algo "religioso", de certa forma. Nas palavras de Albert Einstein: "Se existe algo em mim que pode ser chamado de religioso, esse algo é a admiração ilimitada pela estrutura do mundo tão longínqua quanto a nossa ciência pode nos revelar.".

Pois bem, tendo visto aquela maravilha de documentário com suas animações computadorizadas antiquadas e toscas dos anos 1980 (mas nem por isso tornando o material menos interessante), fiquei louco para voltar naquela locadora e comprar os episódios que faltavam. No dia seguinte, peguei meu carro e fui na tal locadora. Chegando lá, com alguns meses de atraso, vi que o estoque de VHS estava minguante e quase no fim. Fui naquela bendita prateleira, mas não se encontravam mais lá as outras fitas. Provavelmente outros aficionados em ciências já tinham rapinado toda a obra do Dr. Sagan. Ainda procurei nas outras prateleiras restantes. Talvez, quem sabe, tivesse sobrado um mísero episódio do "Cosmos" esquecido entre "Duro de Matar" e "Exterminador do Futuro". Procurei em vão. Ainda tentei perguntar ao atendente da loja se ele não sabia de nenhum vestígio remoto daquela estupenda série. Ele não sabia nem do que eu estava falando.

Nos meses seguintes me informei melhor sobre a série pesquisando pela Internet. Alguns meses depois, no primeiro semestre de 2005, felizmente encontrei a série sendo vendida no Mercado Livre. Eu costumava freqüentar o Mercado Livre para compra e venda de DVDs de filmes. O vendedor, para minha surpresa, morava na minha cidade, Fortaleza-CE. Comprei logo, antes que mais esse item sumisse das minhas vistas (eu não cometeria o mesmo erro novamente). Eram DVDs piratas copiados diretamente da série original em VHS, mas estavam com ótima qualidade.

A série tem 13 episódios, dos quais eu só tinha assistido 1 deles. Ainda faltavam 12 episódios, 50 minutos cada aproximadamente, de contemplação, aprendizado e maravilhamento. Fui assistindo na ordem desde o primeiro até o último. A sensação era tão boa que é difícil descrever. Outra sensação que tive foi a seguinte: depois que eu via cada episódio, eu sabia que ainda faltavam outros ainda por assistir e isso me alegrava. Chegou um momento que faltavam 6 episódios que eu não tinha visto. Depois faltavam 5, e assim por diante. E é engraçado, mas eu estava muito feliz por ainda faltarem alguns para ver. Era tão legal que eu me alegrava sabendo: "Puxa, ainda tenho mais 4 episódios para assistir. Que bom!". A sede de conhecimento era grande, mas também era boa a sensação de que eu iria continuar aprendendo. É tanto que eu não fiz questão de assistir tudo de uma vez (acho que levei um pouco mais de 2 semanas para assistir todos). Eu quis saborear aqueles momentos de ignorância ainda tendo algo para assistir. Por fim, sobrou apenas um último episódio, o de número 13, a última sensação de incompletude a respeito daquela série deslumbrante. Depois que eu assistisse, só me restaria assistir de novo (algo que eu já fiz, inclusive alguns episódios eu já assisti umas 4 vezes). Mas como somos imperfeitos, sempre temos algo novo a aprender. Algum detalhe que não foi prestada a devida atenção, algum conhecimento que foi aliado a outros posteriores, coisas que foram esquecidas, vendo de um novo ângulo as explicações, entendendo melhor, pesquisando em outros lugares por informações complementares e assim por diante.

Nossa ignorância é tão grande que temos que estudar continuamente (muitas vezes para conseguirmos nos manter no mesmo lugar). De tal forma que, terminar de assistir o "Cosmos" só me incentivou ainda mais na busca de conhecimento. Foi um empurrão bem forte na direção da ciência. Um empurrão dado por Carl Sagan, um dos maiores divulgadores da ciência que esse planeta já conheceu. Um empurrão dado há mais de 25 anos, quando ele resolveu produzir a série televisiva "Cosmos", filmando ao longo de três anos, em quarenta locais de doze países, e que já atingiu mais de 600 milhões de pessoas em mais de 60 países, sendo a série mais largamente difundida e assistida de todos os tempos. Em 2005 lançaram a série oficialmente em DVD para a comemoração dos seus 25 anos e a abertura é feita pela sua esposa, Ann Druyan. Obviamente que também já comprei.

Carl Sagan morreu em 20 de Dezembro de 1996 aos 62 anos de idade depois de anos de batalha contra uma rara doença na medula óssea chamada mielodisplasia. Um pouco dessa luta é relatado por sua mulher no último livro escrito por ele e publicado postumamente "Bilhões e Bilhões". Despediu-se de sua filhinha dizendo: "Bela, bela, Sasha. Você não é só bela, você também é deslumbrante.". Ann Druyan faz um relato emocionante dos seus últimos momentos com Carl: "Durante as horas seguintes, os monitores do hospital pareceram documentar uma mudança na situação. Minhas esperanças se renovaram, mas no fundo da minha mente não pude deixar de observar que os médicos não partilhavam meu entusiasmo. Viam nessa recuperação das forças aquilo que realmente era, o que eles chamam de "veranico", uma breve trégua do corpo antes de sua luta final "e uma vigília de morte". Carl me disse calmamente: "Vou morrer.". "Não", protestei. "Você vai vencer desta vez, assim como já venceu antes, quando tudo parecia sem esperança." Ele se virou para mim com aquele mesmo olhar que eu tinha visto inúmeras vezes nos debates e brigas de nossos vinte anos de trabalhos em conjunto e amor apaixonado. Com uma mistura de fino bom humor e ceticismo, mas como sempre, sem nenhum vestígio de autopiedade, disse ironicamente: "Bem, vamos ver quem tem razão desta vez.". Sam, então com cinco anos, veio ver seu pai pela última vez. Embora estivesse com dificuldade para respirar e falar, Carl conseguiu se recompor para não assustar seu filhinho. "Eu te amo, Sam." foi só o que conseguiu dizer. "Eu também te amo, papai.", disse Sam solenemente.".

E hoje fazem exatamente 10 anos que ele se foi, deixando saudades não apenas na sua família e amigos, mas em todos que o conheceram e sem dúvida naqueles que virão a conhecê-lo através de sua obra. Sua obra é tão vasta e preciosa que ainda tenho muito a aprender com ele. Já li seis de seus inúmeros livros publicados e ainda tem muitos pela frente. Que bom!

Hoje ele não é mais um desconhecido pra mim, mas parece ser alguém da família com quem sempre convivi.

Termino colocando a minha citação favorita desse grande homem:

"Diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo, é um imenso prazer para mim dividir um planeta e uma época com você." (Carl Sagan)




E me atrevo a responder: "Carl, pode ter certeza, o prazer é todo nosso!"

Material adicional de apoio:

Carl Sagan
http://en.wikipedia.org/wiki/Carl_Sagan
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_Sagan

In Memorian
http://www.asterdomus.com.br/artigo_carl_sagan_in_memorian.htm
http://tecnocientista.info/noticia_detalhe.asp?cod=4038
http://str.com.br/Scientia/bilhoes.htm

Cosmos
http://en.wikipedia.org/wiki/Cosmos:_A_Personal_Voyage
http://pt.wikipedia.org/wiki/Cosmos

Citações
http://en.wikiquote.org/wiki/Carl_Sagan
http://pt.wikiquote.org/wiki/Carl_Sagan

terça-feira, 19 de dezembro de 2006

Credibilidade Altamente Comprometida

Imaginemos a seguinte situação hipotética onde alguém diz acreditar que: (1) "o Sol gira em torno da Terra", (2) "o Holocausto nunca ocorreu" e (3) "o cigarro não tem qualquer relação com o câncer de pulmão e não faz mal à saúde". Além disso, esta mesma pessoa também afirma (4) "ter um relacionamento pessoal com seres sobrenaturais, mais especificamente com duendes invisíveis, que o visitam constantemente em aparições ou visões, que orientam sua vida, que respondem aos seus pedidos e que dizem ser os portadores da verdade, além de trazerem um pote de ouro do final do arco-íris, de vez em quando".

Sabemos que as afirmações "1", "2" e "3" são falsas. Temos provas observáveis de que a Terra é que gira em torno do Sol. Na verdade, todas as evidências em diversos campos do conhecimento apontam para isso. Também temos documentos, papeis, filmagens, ruínas, construções e testemunhos oculares (no caso, vítimas) de que o Holocausto realmente ocorreu. Apesar da idéia de que nunca tenha havido um Holocausto ser bastante agradável e confortadora, temos que nos ater a dura realidade dos fatos. E, por fim, possuímos milhares de pesquisas científicas e estatísticas comprovando, inclusive de forma independente, que o cigarro está diretamente relacionado ao câncer de pulmão e que, definitivamente, faz mal à saúde.

Observando este cenário, a credibilidade de tal pessoa fica altamente comprometida. De tal forma que, mesmo sabendo que os argumentos é que devem ser pesados independentemente dos seus interlocutores, suspeitamos fortemente que a afirmação "4" também esteja errada. Não que esta alegação não seja tentadora, claro. Afinal de contas, quem não gostaria de ganhar um pote de ouro? Mas vejamos, além da suposta existência de duendes ser algo nunca comprovado por evidências, verificamos que a pessoa que afirma isso já tem o habito de divulgar informações falsas como sendo verdadeiras, talvez por ingenuidade ou desconhecimento, talvez por ser mentirosa (por hora, desconsideremos a hipótese da pessoa ter algum nível de insanidade mental).

Mas e se "4" for verdadeiro, em que isso implicaria? Não poderiam esses duendes mágicos e sábios avisa-la de que está enganada sobre os outros três pontos? Por quê será que esses seres magníficos, portadores da verdade, não avisam que essa pessoa está errada em relação a "1", "2" e "3"? Será que isso não importa para eles? Será que tais seres não desejam que essa pessoa consiga entender corretamente os outros pontos? É difícil imaginar que tais seres benevolentes e ditos "portadores da verdade" não queiram que essa pessoa seja esclarecida sobre tais pontos, principalmente levando em consideração o fato de que supostamente orientam sua vida e respondem suas dúvidas. Pode ser que isso não importe para eles, pode ser que essas sejam questões periféricas, mas será que não percebem que isso complica a vida dessa pessoa? Será que não percebem que os outros vendo que a pessoa acredita em cada coisa absurda também podem achar que estaria enganada sobre "4"? E seria pior ainda se tal pessoa afirmasse que (5) "os seres sobrenaturais disseram que "1", "2" e "3" são verdadeiros". Esta pessoa diz que está sendo iluminada por esses seres sobre esses três pontos, portanto devem ser verdadeiro, apesar de tudo indicar o contrário. Mais uma vez, algo extremamente intrigante, inclusive para os próprios seres sobrenaturais (a não ser que sejam deliberadamente omissos, mentirosos ou até mesmo inexistentes). Novamente, a omissão desses seres (caso existam) em avisar essa pessoa sobre seus enganos é mais um ponto favorável à sua inexistência (ou um ponto desfavorável ao seu caráter).

E, curiosamente, esse não é um cenário fictício. Não estou criando cenários hipotéticos pelo simples prazer de divagar e elaborar as mais divertidas elucubrações mentais, conquanto isso seja também extremamente prazeroso (obras como "O Guia do Mochileiro das Galáxias" são bastante divertidas). Infelizmente, é um cenário real. Estou falando dos Criacionistas. Esses literalistas bíblicos dizem coisas como (1) "a Terra tem 6.000 anos", (2) "Deus criou o homem e todos os outros animais de forma instantânea e independente e nenhuma evolução das espécies ocorreu" e (3) "um dilúvio global varreu toda a vida do planeta, exceto a família de Noé e os animais que estavam em sua arca". Mas não é só isso, dizem também que (4) "Deus existe, enviou Jesus para morreu pelos nossos pecados e é nosso salvador e o Cristianismo é a religião do único Deus verdadeiro", além de tantas outras coisas. Percebem o problema disso?

Imaginemos agora a argumentação acima para esse cenário. Mais uma vez temos afirmações "1", "2" e "3" evidentemente e comprovadamente falsas de acordo com milhares de evidências, provas, vestígios, estudos de centenas de campos do conhecimento, inclusive independentemente uns dos outros que corroboram os resultados uns dos outros sobre evolução, geologia, ecologia, genética, astronomia, etc.

A Terra tem aproximadamente 4,5 bilhões de anos. Sabemos disso baseado nos mais modernos métodos de datação radiométrica, onde temos mais de quarenta diferentes métodos baseados em isótopos radioativos sendo feitas medições diariamente há mais de cinqüenta anos e numa larga variedade de materiais. São milhares de amostras tanto terrestres como extraterrestres, no caso, minerais e rochas terrestres, meteoritos e amostras lunares. São centenas de milhares de medições com excelente precisão e que corroboram os resultados umas das outras. Além de outros métodos astronômicos baseados na massa e luminosidade do Sol e outras estrelas. E o interessante é que tais métodos confirmam de forma independente tais medições, pois possuem princípios diferentes, relógios atômicos diferentes, todos concordando uns com os outros com uma precisão de menos de 1% de margem de erro. No caso dos criacionistas, o erro deles está em um fator de 10 elevado a 6.

Quanto a evolução das espécies, não apenas é um fato mais do que comprovado por dezenas de campos do conhecimento humano, como também é um dos ramos da ciência moderna que mais estimula novas descobertas em diversas áreas. Como disse o biólogo Richard Dawkins, professor da Universidade de Oxford: "A evidência positiva para o fato da evolução é verdadeiramente esmagadora, construída de centenas de milhares de observações que se corroboram. Essas vem de áreas como geologia, paleontologia, anatomia comparativa, fisiologia, bioquímica, etologia, biogeografia, embriologia e – aumentando nos dias de hoje – genética molecular. O peso das evidências tem se tornado tão grande que a oposição ao fato da evolução é tola para todos que estão familiarizados com pelo menos uma fração dos dados publicados. Evolução é um fato: um fato tanto quanto as placas tectônicas ou o sistema solar heliocêntrico.". A evolução, como fonte de conhecimento e estímulo a pesquisa, foi eleita como "Breakthrough of the year" (algo como "Revelação do Ano") em 2005, tendo sido a responsável por mais publicações e descobertas científicas do que qualquer outro ramo da ciência, ajudando campos como agropecuária, farmacologia e medicina.

Sobre o Dilúvio Global de Noé, nada mais é do que um mito devidamente exagerado, que os cristãos mais instruídos e sensatos entendem como uma alegoria que encerra um importante ensinamento sobre o relacionamento do homem com a divindade. Mitos de inundações, ataques de animais, secas, etc., são comuns na grande maioria das civilizações. Normalmente apresentam alguma base factual e sofrem uma interpretação errônea. O mito surge quando se atribui uma interpretação a esses fatos, normalmente apelando para as divindades das mais variadas. Com o tempo o mito se solidifica e acaba sendo incorporado na base do respectivo sistema teológico. Alguns dos problemas que os criacionistas não conseguem resolver ou simplesmente não encaram a realidade dos fatos sobre o mito de Noé são: alimentação dos inúmeros animais durante um intervalo de tempo de mais de um ano dentro da arca; desequilíbrio ecológico total pós-dilúvio que não supriria as necessidades alimentares de carnívoros e herbívoros, o que levaria a total extinção da vida animal; completa falta de evidências geológicas para apoiar tal evento; dentre tantas outras coisa. Enfim, não vou me alongar sobre esse assunto, pois esse não é meu objetivo aqui. Contudo, verifiquem o material adicional que disponibilizo logo abaixo para maiores esclarecimentos sobre os assuntos mencionados.

A Arca de Noé segundo Edward Hicks (1846)

Voltando ao assunto, se o Deus Cristão existe, porque deixa tantos cristãos serem honestamente iludidos dessa forma acreditando em "1", "2" e "3"? Por quê Deus não ilumina a vida dessas pessoas e mostra a verdade sobre geologia, evolução, astrofísica, ecologia, etc.? Deus não percebe que isso compromete a questão do evangelismo, pois essas pessoas estão mal vistas perante a sociedade? Isso tudo é muito suspeito.

Alguns podem dizer que trata-se da questão do livre-arbítrio e que Deus não pode ser culpado pelo mal comportamento de suas desobedientes criaturas. Nesse caso, acho que ficariam enquadrados aqueles criacionistas que são mentirosos descarados que fabricam mentiras conscientemente, forjam itens falsos e montam museus fraudulentos, por exemplo, como é o caso de alguns deles. Nesse caso, realmente, a própria mentira elaborada por eles é culpa exclusiva deles. Mas meu argumento não é tanto para esses casos e eu concordo plenamente que Deus ficaria muito chateado com esse povo (o que pode não ser nada bom para eles no dia do acerto de contas).

Também podemos pensar que essas questões sejam periféricas e os seguidores de Deus não deveriam se preocupar com detalhes sobre a vida biológica ou sobre o universo, mas apenas com sua vida espiritual. Porém nesse caso, se eles são ignorantes sobre o assunto ou se não interessa, então que não fiquem propagando as mentiras criacionistas. Se são questões periféricas, então que não se preocupem com isso e deixem a ciência ser ensinada como realmente deve ser. O problema é que muitos dos proponentes do Criacionismo divulgam essas inverdades durante décadas e inclusive tentam impedir que a teoria da evolução seja ensinada nas salas de aula, como já aconteceu algumas vezes nos Estados Unidos, usando dos meios e estratégias mais macabras que se possa imaginar (alguns até propõem que os pais rasguem os livros escolares dos filhos que contenham material "satânico" sobre geologia e biologia). O paleontólogo Stephen Jay Gould comentou no seu livro "A Galinha e Seus Dentes" que o movimento criacionista nada mais é do que uma investida política da extrema direita evangélica norte-americana.

Mesmo nesses casos de mentirosos descarados ou de criacionistas ignorantes que propagam continuamente essas mentiras ingenuamente, há quem diga que eles "vivem sinceras experiências com Deus". Se eles vivem tais experiências, é mais um motivo para eu desconfiar deles. Se tivessem realmente tais experiências, provavelmente Deus orientaria-os sobre isso e responderia os seus questionamentos, sob a pena de comprometerem fortemente a pregação do evangelho e estarem dando um péssimo testemunho de vida. Se vivem tais experiências, como Deus é tão omisso a ponto de não avisa-los? Sim, pois eles próprios dizem que Deus os orienta sobre os mais variados e periféricos assuntos de suas vidas. Ou essas experiências possuem alguma falha de comunicação ou não ocorrem de forma nenhuma.

O meu argumento está mais direcionado àqueles criacionistas sinceros e honestos. Aqueles que acreditam fielmente no Criacionismo e tentam defender essa idéia descabida e que simultaneamente estão honestamente enganados. Como acreditam e pregam honestamente algo evidentemente falso (o Criacionismo) mesmo que não saibam que é falso e, simultaneamente, pregam algo que supostamente dizem ser verdade (as alegações do Cristianismo)? Isso é altamente estranho, para dizer o mínimo.

A questão principal é que eles defendem o Criacionismo e acabam dando margem para outros desacreditarem em outras coisas que também defendem, pois ambas as afirmações são igualmente defendidas continuamente, e principalmente porque também dizem que "Deus orienta-nos e mostra-nos que o Criacionismo está correto". Isto é evidentemente falso. O testemunho desses cristãos criacionistas está altamente comprometido o que pode levar a inúmeras pessoas se afastarem do Cristianismo. E eu acho que o Criacionismo, por ironia que possa parecer, é algo contra o próprio Cristianismo, contra a própria noção de experiência pessoal e caminhada com o suposto Deus Cristão.

Isso deve perturbar bastante os cristãos que conseguem conciliar sua fé com as descobertas da ciência moderna, entendendo que a Bíblia é um livro de religião e não de ciências. Deve ser chato ver seu irmão na fé tão enganado sobre esse assunto de criacionismo. É tanto que a maioria dos líderes cristãos não vê problema nenhum com as descobertas da ciência e muitos até já se pronunciaram a esse respeito. O próprio Papa João Paulo II fez uma declaração em 1996 dizendo: "É realmente impressionante que essa teoria tenha progressivamente enraizado-se nas mentes dos pesquisadores seguindo uma série de descobertas feitas em diferentes esferas do conhecimento... é mais que apenas uma hipótese... A convergência dos resultados dos estudos feitos de forma independente pelos pesquisadores, em si mesmo, é um importante argumento em favor dessa teoria...". Do lado cristão evangélico temos uma declaração assinada até agora por mais de 10.400 líderes evangélicos alegando que: "Nós, abaixo-assinados, clérigo cristão de muitas diferentes tradições, acreditamos que a verdade atemporal da Bíblia e as descobertas da ciência moderna podem coexistir confortavelmente. Nós acreditamos que a teoria da evolução é uma verdade científica fundamental, que tem aguentado firme o escrutínio rigoroso sobre o qual muito do conhecimento e conquistas se baseiam.". É realmente uma pena que nem todos entendem isso. Como seria bom!

Já não chega que as afirmações do Cristianismo necessitem de fé para serem acreditadas, ainda vem esses criacionistas e tornam as coisas ainda mais difíceis. Eu consigo entender bem melhor um pastor, padre, rabino ou xamã que pregue sobre a importância da fidelidade no casamento, mas que, por um descuido e toda uma situação que se formou de forma imprevista além do seu controle, acabe cometendo adultério. Eu consigo entender e aceitar isso. Isso não invalida o que ele pregava sobre fidelidade no casamento. Afinal de contas, sei lá, por uma fraqueza momentânea, acabou fazendo algo que desaprova, mas sabe que isso foi errado. Agora acho bem mais difícil de entender um cristão que se diz seguidor do Deus verdadeiro, que diz ter uma caminhada toda especial, que é direcionado por esse Deus, que ora e tem suas dúvidas respondidas por Deus, acho difícil entender o motivo de tamanho engano sobre essas afirmações criacionistas. E isso, na minha opinião, compromete muito a pregação da mensagem cristã. Como pode uma pessoa estar tão enganada sobre um assunto continuamente durante décadas pregando o Criacionismo e, simultaneamente, supostamente estar certa sobre suas afirmações a respeito de Deus? É extremamente intrigante.

Os criacionistas fazem um tremendo desserviço contra a própria causa.

Material adicional de apoio:

Idade da Terra
http://www.talkorigins.org/faqs/faq-age-of-earth.html
http://en.wikipedia.org/wiki/Age_of_the_Earth

Breakthrough of the year: Evolution in Action
http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/310/5756/1878

Problems with a Global Flood
http://www.talkorigins.org/faqs/faq-noahs-ark.html

A "Ciência" da Criação e o Dilúvio de Noé
http://us.geocities.com/gilson_medufpr/noe.html

An Open Letter Concerning Religion and Science
http://www.butler.edu/clergyproject/religion_science_collaboration.htm

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Ilusão de Separação

Famosa e certa é a frase do filósofo René Descartes: "Penso, logo existo!"

O ato de pensar nos dá a certeza da nossa existência, mesmo que ela seja tão efémera, mas nem por isso pouco importante ou desinteressante. Pensar faz com que nós percebamos que somos indivíduos únicos, cada um de nós. Contudo, também nos dá a falsa impressão de que estamos separados de todos os outros, de todo o resto, como se não fizéssemos parte do que nos rodeia. O ar que respiro faz parte de mim? Ou será que apenas quando está dentro dos meus pulmões, e depois, quando o libero, faz parte apenas do "resto"? Em que momento poderíamos fazer essa separação? Será que existe essa separação? Penso que não.

O nosso cérebro é uma ferramenta poderosíssima que foi modelada pela seleção natural ao longo de centenas de milhões de anos de evolução biológica. Uma ferramenta muito útil, diga-se de passagem, que nos fornece informações sobre o mundo que nos cerca, orientando-nos na antiga arte da sobrevivência. Capacita-nos para percebermos e simularmos o mundo ao nosso redor ajudando-nos a resolver os problemas do cotidiano e também, por outro lado, muitas vezes fazendo com que enganemos a nós mesmos e que sejamos marionetes das nossas próprias fantasias.


Se formos parar para pensar, podemos verificar que as partículas subatômicas formam átomos, os átomos formam moléculas, as moléculas formam substâncias, e estas formam, em última instância, os nossos corpos. Corpos formados de carbono, ferro, cálcio, potássio, hidrogênio, sódio, glicose, água e tantas outras coisas. Um corpo nada mais é do que um amontoado de átomos organizados de certa maneira. Estamos separados do ambiente apenas porque, em alguns intervalos espaciais, alguns átomos interagem mais fortemente entre si para formarem nossos corpos? Será que a nossa pele torna-nos imunes das influências exteriores? Claro que não, inclusive uma de suas funções é reconhecer essas influências e lidar com elas. Ainda que existam fronteiras corporais, ocorrem as interações, que são tão vitais quanto as próprias e ilusórias separações. Recebemos e devolvemos algo, tanto para o ambiente como uns para os outros. E assim, também damos nossa contribuição ao universo que achamos não fazer parte do nosso corpo, como se nós também não fizéssemos parte dele. Ledo engano!

Essa minuciosa conexão cósmica que une a todos nós em níveis pequenos demais para discernirmos foi, de certa forma, irrelevante na nossa evolução. Os problemas cotidianos que nossos ancestrais mais primitivos tiveram que resolver para continuar vivos não tiveram como variáveis o tamanho dos elétrons e nem a velocidade da luz, e por isso é tão difícil concebermos tais grandezas. Somos brutos demais para captarmos e percebermos tais particularidades. Tivemos que aprender a viver em um mundo médio de tamanhos nem tão grandes e nem tão pequenos, com velocidades medianas, tendo corpos de tamanhos que ficam no meio do caminho entre um átomo e uma estrela. Sendo assim, não é incompreensível que sejamos incapazes de perceber alguns pormenores da vida aparentemente insignificantes, porém muito importantes e que acabam por nos mostrar que pensar que o outro está, de alguma forma, separado de nós é uma mera ilusão grosseira. Você faz parte de mim, e eu de você, na medida em que influenciamos a vida um do outro, mesmo que não percebamos e que seja de forma aparentemente insignificante.

Definições Iniciais

Faísca: descarga elétrica, centelha, raio, brilho momentâneo.

Pensamento: ato ou faculdade de pensar, imaginação, ideia, reflexão, meditação.