quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Crise de Identidade

Durante um ato sexual, o macho libera milhões de espermatozóides, dos quais, via de regra, apenas um deles atingirá o único óvulo da fêmea e será fecundado, gerando um novo indivíduo. Imagine a improbabilidade de qualquer um deles conseguir tal feito. Nós que nascemos certamente somos sortudos! (Assim como qualquer outro que tivesse tido êxito em nosso lugar). Pois bem, milhões de células sexuais masculinas travando uma batalha épica por uma única e exclusiva célula sexual feminina. Isso me lembra a história da Guerra de Tróia, onde exércitos inimigos lutavam por causa da linda Helena. Daí concluímos que as fêmeas são muito mais especiais do que machos. Os espermatozóides abundam e milhões são vulgarmente desperdiçados, enquanto que os óvulos são únicos e preciosos e não podem ser perdidos à toa.

Depois que o óvulo é fecundado, inicia-se o desenvolvimento do embrião do que será, um dia, um único indivíduo. Bem, normalmente é o que acontece, daí temos a certeza de que aquele indivíduo é exclusivo, único e tem uma identidade bem definida, não se confundindo com nenhum outro, tem um código genético só dele com uma mistura especial de genes que nenhum outro indivíduo em toda a história do universo possui. Contudo, nem sempre é assim. Acontece que existem casos onde o óvulo divide-se e forma dois embriões (duas massas celulares), dando origem a dois indivíduos geneticamente idênticos, com as mesmas características e inclinações genéticas, seja para doenças, seja para saúde, cor dos olhos, tipo de cabelo, tonalidade de pele, altura, e até mesmo com idênticas influências genéticas em relação a comportamentos. Logicamente que os genes não são determinantes para atributos psicológicos, pois isso também envolve toda a experiência de vida da pessoa, mas definitivamente está cada vez mais sendo comprovado que, em parte (para que isso fique bem claro, repito: em parte), os genes também contribuem com o comportamento dos indivíduos.

Irmãos gêmeos idênticos são casos especiais. Eu, particularmente, tenho três primos que são gêmeos idênticos, ou seja, são trigêmeos. Hoje já são adultos, cada um tem o seu jeito, eles têm profissões diferentes, um é mais magro, outro é mais gordo, cada um tem sua família e seus próprios filhos, mas ainda comemoram o aniversário na mesma data, e um exame de DNA não seria suficiente para distinguir a paternidade dos seus filhos. Também tenho dois amigos de faculdade que são gêmeos idênticos, e não sabemos o que é mais parecido neles: a aparência física ou a inteligência. Tais irmãos, desde que nasceram, tiveram vidas únicas com experiências próprias, o que os tornou diferentes um do outro. Apesar de que gêmeos idênticos, mesmo vivendo separadamente em culturas diferentes, têm a tendência de terem gostos parecidos. Vi um programa de tevê um dia só sobre gêmeos idênticos que tinham sido criados em famílias diferentes, até mesmo em países diferentes. Apesar de toda a separação, ainda eram bem parecidos no jeito de falar e até nos gostos. Tinha um casal de irmãs que trabalhava com a mesma coisa, inclusive na mesma empresa, só que em cidades diferentes. Um caso estranho foi de um casal de irmãos onde um foi criado com a mãe na cultura da Alemanha nazista, enquanto que o irmão foi morar com o pai nos Estados Unidos e foi educado na cultura judaica. Pense! Um deles era racista, porém o outro tinha fotos com coleguinhas negros no colégio. Só se conheceram depois de adultos e viram que, mesmo assim, ainda tinham inúmeros traços idênticos, tanto físicos quanto psicológicos, desde o gosto do sorvete e preferência musical até o tipo de roupa que gostavam de usar e o esporte favorito. Vendo o caso de gêmeos idêntico, mesmo com toda a semelhança, temos a clara o óbvia noção de que se tratam de duas pessoas distintas. São dois indivíduos separados, cada um com sua própria identidade. Até aqui tudo bem.

Meus primos trigêmeos Fábio, Flávio e Fernando no casamento dos meus pais (não me pergunte quem é quem)
Com o advento da tecnologia da clonagem (quem não lembra do primeiro mamífero clonado, a famosa ovelha Dolly?), as pessoas ficaram com receio dessa novidade e acharam que o clone seria um ser estranho que, a princípio, não deveria existir. Todo um cenário de mistério envolveu esse tipo de questão. Alguns religiosos chegaram a dizer que isso seria errado, pois supostamente "o clone não seria uma pessoa e não teria uma alma". Ora, um clone nada mais é do que um irmão gêmeo idêntico. Biologicamente falando, não existe diferença nenhuma entre um par de irmãos gêmeos idênticos e um par de clones, nem mesmo semanticamente falando existe essa diferença. Gêmeos idênticos são clones um do outro. Na questão da clonagem, o que se estaria sendo feito seria estar criando um irmão gêmeo idêntico que, tão somente, nasceriam em época diferentes. Só isso! Nenhuma diferença mais. São dois indivíduos que possuem o mesmo código genético. Não há mistério nenhum nisso. Claro que clonar uma pessoa e fazer com que nasça um bebê que seja irmão gêmeo idêntico do original pode provocar talvez problemas psicológicos nas pessoas e nos indivíduos envolvidos e certamente que isso deve ser debatido por um conselho de ética. Mas um clone é um indivíduo tanto quanto qualquer outro. Não há nada de estranho ou misterioso num clone. Inclusive, alguns insetos reproduzem-se pelo processo de clonagem: simplesmente o indivíduo reproduz-se sozinho e têm um bocado de filhotes que possuem precisamente (salvo algumas raras mutações casuais) o mesmo código genético do original. Enfim, um clone humano seria uma pessoa normal. Voltando ao assunto, mesmo assim, teríamos a patente noção de que trata-se de um outro indivíduo com uma identidade única formada pelas experiências pessoais e exclusivas de sua vida.

Agora vamos começar a complicar um pouco a questão e entrar no mundo da ficção científica. Alguns filmes abordaram o tema de clonagem. Um deles é o filme "O Sexto Dia" onde existe um tráfico de clones que são feitos para substituir os indivíduos originais que tenham sofrido algum acidente. A trama é mais ou menos a seguinte. O processo de clonagem está consolidado na sociedade, mas apenas para animais de estimação. Um grupo ambicioso começa a ganhar dinheiro usando o processo em humanos. Nesse processo de clonagem, é possível copiar toda a memória do indivíduo original e implanta-la no clone. Então empresários dos esportes, por exemplo, contratam esse grupo como uma forma de "seguro", onde os seus jogadores que sofrerem lesões são sumariamente substituídos por clones intactos, instantâneos e que possuem a mesma habilidade física e a memória do original. O indivíduo original é assassinado sem choro nem vela. O processo é tão perfeito, que nem mesmo o clone sabe que é um clone. Tendo a mesma memória do original, simplesmente age como se nada tivesse acontecido, achando que a vida que está levando sempre foi a sua, no seu trabalho de sempre, na sua família, nem mesmo a família pode notar a diferença. De fato, não há. De todo jeito, será que não é ele mesmo? (Outro filme onde é abordado um assunto parecido é o filme "A Ilha")

Considerando esse cenário fictício, onde pudéssemos produzir um clone, acelerar o seu crescimento para a mesma idade do original em poucas horas e que pudéssemos copiar a memória de um indivíduo para o outro. Enfim, o clone é ou não é o mesmo indivíduo? Ficamos entendidos que uma pessoa difere da outra por causa das experiências de vida que teve, apesar de poder ter o mesmo código genético. Mas nesse caso, ambos os indivíduos além de possuírem o mesmo DNA também possuem as mesmas experiências. O que é feito no filme é que normalmente o original é assassinado para evitar qualquer problema. Mas e no caso de ambos continuarem vivos? Cada um dos dois indivíduos tem as mesmas memórias, o mesmo DNA, enfim, a mesma experiência de vida. A única diferença é que um dos corpos realmente participou de todos os eventos durante a vida e o outro corpo apenas recebeu uma cópia exata de tudo que se passou. Será que o fato do corpo original ter estado em todos aqueles momentos o faz mais merecedor do status de identidade verdadeira? Acho que não. No meu entendimento, o clone tem os mesmos direitos e deveres do original. Pensem bem, ambos conhecem as mesmas pessoas, possuem as mesmas habilidades, têm as mesmas lembranças, tem o mesmo emprego, amam os mesmos filhos. Tipo assim, praticamente são a mesma pessoa. Só que a mesma pessoa duplicada. Certamente que a partir do momento da duplicação, cada um dos indivíduos vai ter novas experiências exclusivas, o que fará com que sejam cada vez mais diferentes e montem uma identidade única, pelo menos parcialmente.

Na verdade, eu ainda nem comecei a crise de identidade que estou querendo discutir. Bem, como eu disse, no filme, o indivíduo original é assassinado, enquanto que o clone ocupa o seu lugar. Independente de qualquer confusão sobre "Quem é quem?" e "É a mesma pessoa ou não?" (De certa forma, eu acho que é!), ainda existe outro problema: a pessoa morreu ou não? Se pensarmos do ponto de vista do indivíduo, acho que fica bem claro que quando o corpo morre, o indivíduo não terá mais vida e nem mais nenhuma experiência futura. É notável que o clone é um outro indivíduo separado do original. Tipo assim, eu sei que se esse cenário hipotético acontecesse comigo, eu fosse clonado e dessem um tiro na minha cabeça eu estaria morto. O clone continuaria vivendo sua/minha vida tranqüilamente, mas eu, euzinho, eu mesmo não estaria mais vivo. Do ponto de vista das outras pessoas, sabendo que não se pode diferenciar nem fisicamente e nem psicologicamente o clone do original, é como se eu não tivesse morrido. O clone, estando no meu lugar, conheceria as mesmas pessoas, contaria as mesmas piadas, lembraria dos mesmos eventos, trabalharia no mesmo lugar que um dia foi meu (e escreveria no mesmo Blog). De fato, nem mesmo ele poderia dizer que não era eu. Ele seria eu. Para ele, ele sou eu. Afinal, eu morri mesmo? Se existe um corpo com o meu DNA e as minhas experiências, não sou eu? Acho que ele sou eu sim. A questão é que seria "eu" de certa forma (para os outros), mas não seria "eu" pessoalmente falando. Dá para entender? Verei se explico melhor.

Quando eu acordo todos os dias e me olho no espelho, eu vejo um indivíduo e sei que sou eu. Eu tenho a nítida impressão de que tenho uma identidade pessoal e tenho a sensação de que sou um ser vivo. Se eu fosse substituído por um clone, como sugerido acima, eu não acordaria mais, pois estaria morto. Mas o meu clone acordaria e sentiria exatamente a mesma sensação de ser eu, de estar vivo. Tudo bem, aqui eu sei que eu morri e fui substituído, eu não terei mais experiências, a minha identidade pessoal acabou, acabou a vida, acabou as sensações, não sentirei mais nada, aquele clone é outro ser que, apesar de ter a mesma memória que eu, tem suas próprias sensações. Ok! Nesse cenário hipotético, acho que dá para entender que eu realmente morri. Agora tem outro cenário que eu já pensei bastante e até agora não consegui saber se eu morri ou não. Vamos a ele.

A nanotecnologia é outro fenômeno que está tomando de conta do mundo. Chips cada vez menores e mais potentes são produzidos para executar as mais variadas tarefas. Num livro que li chamado "The Fuzzy Future" (O Futuro Nebuloso) de Bart Kosko, no finalzinho do livro, o autor sugere que talvez partes do cérebro pudesse ser substituídas por chips de forma bem gradual. De fato, hoje em dia, pessoas já usam chips no cérebro para exercer funções perdidas (por exemplo, implante coclear para surdos). Minha proposta é a seguinte: imaginem se existisse um chip que pudesse fazer exatamente as mesmas funções de certa parte do cérebro. Se existisse tal chip, e pudéssemos substituir parte do nosso cérebro por ele, quais seriam as implicações? Imaginem que, como no filme, pudéssemos copiar tudo que existisse em uma parte de, digamos, 1% do nosso cérebro, colocar nesse chip, fazer uma microcirurgia, cortar esse 1% do nosso cérebro e substituir pelo chip. Consigo imaginar-me indo para a cirurgia, recebendo uma anestesia, sendo operador pelos médicos e, depois de algum tempo, acordaria numa cama de hospital, perfeitamente recuperado do procedimento. Dá para imaginar que ainda sou eu, Juliano. Eu me levantaria da cama e não sentiria nenhuma diferença, afinal aquele chip substituiu perfeitamente aquele meu 1% do cérebro. Ok, estou vivo, sou eu mesmo.

Agora vamos ver o que isso poderia implicar se continuássemos com isso. Imaginem agora, que eu fizesse uma outra cirurgia para substituir outro pedacinho do meu cérebro (Pessoal, não estou reclamando do meu cérebro, eu gosto muito dele e não quero que ele seja cortado, isso é apenas uma hipótese. Ok?). Agora eu substituiria outra parte de 1% por outro chip com as mesmas funções. O mesmo aconteceria, eu acordaria depois da cirurgia como se nada tivesse acontecido, ainda sou eu, beleza, lembro de tudo que eu lembrava, minha memória não foi afetada, minhas habilidade (seja quais forem) continuam as mesmas. Limpeza! Só que agora tenho 2% de cérebro artificial e o resto biológico. E se eu continuasse, gradualmente e cumulativamente fazendo novas intervenções, substituindo cada vez mais outras partes do meu cérebro por chips super tecnológicos, o que isso significaria? Ninguém notaria a diferença, o indivíduo continuaria sendo o mesmo, inclusive eu ainda seria eu. Será? E se chegasse num momento em que eu já tivesse completado 100% de cérebro substituído? Foi tão gradual que, particularmente, o indivíduo em questão não perceberia nada de diferente, e nem as outras pessoas. Mas ainda seria eu? Eu, por acaso, morri durante o processo? Quando? Aos poucos? Sinceramente eu não sei. Certamente que ainda existiria um corpo sendo comandado por um cérebro artificial que, na prática, seria eu. Isso é extremamente estranho.

Enfim, o que garante a minha identidade pessoal? Quando nos olhamos no espelho, o que nos garante que não somos apenas um "computador" super complexo que age de acordo com toda a história que se passou com aquele corpo e que guardou todos aqueles estados em seus neurônios? Eu acho que, de certa forma, somos isso sim. Mas isso é muito estranho. É como se eu não existisse. Como se cada dia fosse um novo ser que age como se houvesse uma identidade fixa. Quem garante que eu não sou um clone cuja memória foi copiada de outro corpo? Sei que não somos tão tecnológicos assim, e nem sei se isso será possível algum dia (acho bastante improvável). Mas se fosse possível, tal clone ou robô seria a própria pessoa ou não? E se, por acaso, conseguíssemos clonar Einstein a partir de um DNA recuperado de seu corpo e, de alguma forma (se fosse possível na época), tivéssemos gravado toda sua memória e copiado para o seu clone, este indivíduo seria o Einstein? Certamente que ele se sentiria como tal, e poderia até a resolver os problemas da física moderna e descobrir um pouco mais sobre as leis da natureza. Seria ele? Puxa vida, isso perturba muito a minha cabeça.

No filme "Vanilla Sky" o personagem principal morre, é congelado e, num futuro distante, seu corpo é ressuscitado. É o mesmo cara? É outro? Será que é o mesmo somente porque é o mesmo corpo e os mesmos neurônios? Qual a diferença disso e de clonar o Einstein e copiar sua memória? Não vejo diferença nenhuma. Qual a diferença de substituir logo 100% do meu cérebro por um mega computador ou então ir substituindo gradativamente a cada 1% por um novo chip? Definitivamente, esquisito! Quem sou eu? Conversando com um amigo sobre isso, chegamos à conclusão de que trata-se de mais um paradoxo existencial insolúvel. Foi mal!

segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Referências Cruzadas

Uma das coisas que passou pela minha cabeça já faz algum tempo é um tipo de frase que se usa muito quotidianamente, aquelas que contém trechos como: "O pai e o filho", "A mãe e a filha", "O avô e o neto". De repente algo me fez estranhar esse tipo de frase. São frases que possuem dois indivíduos que estão relacionados de alguma forma e onde define-se um indivíduo levando em consideração o outro, numa referência cruzada.

Não tendo nada a ver com o assunto que quero discutir aqui, mas isso me faz lembrar de um provérbio popular que diz: "Tal pai, tal filho" (Qualis pater, talis filius). Inclusive esse ditado virou título de um seriado de tevê, onde pai e filho eram ambos médicos, o filho seguindo os passos do pai. Outros casos de pais e filhos famosos são: Darth Vader e Luke Skywalker; Bob Pai e Bob Filho; Deus e Adão; Kirk e Michael Douglas; e um personagem do Chico Anysio que sempre reclamava do pai dizendo "Pô, pai!". Também há casos de avós e netos conhecidos como é o caso de Erasmus e Charles Dawin, ambos tendo sido famosos naturalistas, tendo este último desvendado o mistério do surgimento das espécies e mudado definitivamente a nossa forma de pensar sobre a vida.

Pais e Filhos famosos
Esse negócio de referência cruzada pode causar uma grande confusão. Pensemos inicialmente na situação "Pai e Filho". Ora, quem é pai logicamente é pai de algum filho, e quem é filho logicamente é filho de algum pai. Será que dizer "pai e filho" não é algo redundante? Não sei, talvez. Mas olhem só, quando nos referimos ao primeiro sujeito da dupla, ao pai, usamos o segundo para caracteriza-lo, e quando nos referimos ao segundo, ao filho, usamos o primeiro. Vejamos, temos uma dupla onde olhamos para o primeiro, o mais velho, e perguntamos: "Quem é?". Daí usamos o segundo, o mais novo, para responder: "É o pai dele.". Então olhamos para o segundo, o mais novo, e perguntamos: "E quem é esse?". Daí usamos o primeiro, o mais velho, para responder: "É o filho dele.". Não está tudo respondido apenas com uma pergunta e resposta? Sim, está. Atribuir a paternidade a um dos indivíduos implica obrigatoriamente na filiação do outro, e vice-versa. Por isso acho um pouco estranho a frase "Pai e Filho". É que usamos um para definir o outro, como num circulo vicioso. Acho que seria mais sensato a frase: "Um homem e seu filho" ou "Um garoto e seu pai". Talvez assim evitássemos a redundância cruzada, se é que queremos evita-la.

Mais estranho ainda é o caso onde inclui-se outra geração: o avô. Vejamos o que significa a frase: "O avô, o pai e o filho". Digamos que o sujeito "1" é o avô, o "2" é o pai e o "3" é o filho. Então, quando dizemos "o avô" estamos usando o sujeito "3" como referência, quando dizemos "o pai" também estamos usando o sujeito "3", e quando dizemos "o filho", daí estamos usando o sujeito "2" como marco referencial. Poderíamos dizer que o esquema 3-3-2 define o sistema referencial desta frase. Percebem que a referência muda ao longo da frase? Isso não é estranho? E se eu quiser usar outras referências, será que faz o mesmo sentido? Vejamos, eu poderia dizer: "O pai, o filho e o neto", daí as referências agora seriam 2-1-1. Isso contrasta frontalmente com o sistema 3-3-2 que usei anteriormente, apesar de significar absolutamente a mesma coisa. Naquele caso o sujeito "1" era definido pelo "3" (sendo seu avô), mas neste último caso é definido pelo "2" (sendo seu pai). Naquele primeiro caso o sujeito "2" era definido pelo "3" (sendo seu pai), mas neste último caso é definido pelo "1" (sendo seu filho). Sei que parece um pouco confuso, mas prestem bem atenção que dá para entender.

Dá para perceber que só existem algumas possibilidades para o sujeito "1": ou chamamos ele de avô do "3" ou de pai do "2". Da mesma forma, o sujeito "2" é filho do "1" ou é pai do "3". E o sujeito "3" ou é neto do "1" ou é filho do "2". Então teríamos as seguintes possibilidades de frase com os respectivos esquemas referenciais: "O avô, o pai e o filho" (3-3-2); "O avô, o pai e o neto" (3-3-1); "O avô, o filho e o neto" (3-1-1); ou "O pai, o filho e o neto" (2-1-1). Essas 4 possibilidades querem dizer a mesma coisa: o sujeito "1" sendo o ancestral dos outros dois, o sujeito "2" sendo descendente de "1" e ancestral de "3", e o sujeito "3" sendo descendente de "1" e "2". O curioso é que podemos usar qualquer um deles para definirmos quem é o outro e montamos nossas frases usando essa referência cruzada e mutante. Se não usássemos as referencias cruzadas poderíamos ter: "Um homem, seu filho e seu neto", "Um homem, seu pai e seu filho", “Uma criança, seu pai e seu avô". Nesses três casos a referência não muda ao longo da frase, onde os dois último sujeitos sempre são definidos pelo personagem principal. Naqueles casos de referência cruzada, parece que o personagem central muda ao longo da frase. Por isso que eu fico em dúvida. Quando alguém fala "O pai e o filho", quem é o personagem principal e quem é o coadjuvante? Usa-se um para definir o outro, num círculo lingüístico, num verdadeiro paradoxo existencial de um ponto de referência cruzado que muda ao longo da frase.

quinta-feira, 18 de janeiro de 2007

Bumba

Resolvi eleger, em cada mês, uma divindade diferente para divulgar a imensa diversidade de crenças existente na humanidade. Existe uma página na internet chamada GodChecker que é muito interessante e que, apesar da linguagem jocosa, é dedicada a tentar catalogar as religiões existentes ou as que já existiram já tendo coletado mais de 2.850 divindades provenientes todos os cantos do mundo, demonstrando a enorme pluraridade de credos no planeta. Inicio a lista com um deus muito interessante da mitologia africana. Apresento-lhes, Bumba!

BUMBA

Também conhecido como MBOMBO, MBONGO

BUMBA: Da tribo dos Bushongo no Congo vem BUMBA, o Deus Criador Africano do Vômito. Sim, vômito.

No início, tudo era trevas. Então, das trevas veio BUMBA, uma figura gigante de pele pálida. Ele não estava se sentindo bem. De fato, não estava se sentindo bem já faziam milhões de anos. Estava sozinho, e a insuportável solidão estava fazendo com que ele ficasse doente.

Atormentado por uma crescente dor de barriga, ele balançava, reclamava e vomitou o Sol. A luz repentina e violentamente jogada no Universo - e ele cuspiu então a Lua. As estrelas vieram logo depois, com um tremendo esforço, ele lançou o planeta Terra. Nós certamente vivemos num mundo muito doente.

Concepção artística da criação de Bumba
Essa configuração nauseante foi trazida para uma conclusão triunfante quando, como um núcleo, ele vomitou nove animais, uma coleção de humanos, e uma pilha de cenouras.

Exausto pelo seu trabalho, ele sentou e observou as nove criaturas multiplicarem-se. Depois de um tempo, elas tinham evoluído em todas as criaturas vivas da Terra. O que vem a mostrar que o Criacionismo e o Evolucionismo estão ambos corretos.

Diferente de uma irritante criatura nomeada TSETSE-BUMBA, todas as suas criaturas eram amigáveis e respeitáveis. Sua solidão acabou e finalmente ele estava contente.

Então os três filhos de BUMBA apareceram. NYONYE-NGANA, CHONGANDA e CHEDI-BUMBA adicionaram os toques finais e logo o mundo estava completo. BUMBA falou gentilmente às suas criaturas humanas antes de ascender aos Céus, para nunca mais ser visto novamente. Até onde nós sabemos, seu estômago nunca mais sentiu problemas desde então.

Dados Gerais:
Área ou povo: povo Bushongo do Congo
Localização: África
Gênero: Masculino
Categoria: Divindade
Nomes alternativos: MBOMBO, MBONGO

quarta-feira, 17 de janeiro de 2007

Eficiência sem esforço

Num tranqüilo final de semana, Zeca e alguns de seus amigos foram para uma casa de praia para aproveitar o sol. Chegando lá, depois de algumas horas, perceberam que estava faltando água na casa. Felizmente, a casa era repleta de coqueiros que estavam cheios de côcos fresquinhos. Sua amiga, Gigi, deu uma idéia: "Pessoal, pra quê comprar água? Vamos subir nos coqueiros, tirar os côcos e beber a sua deliciosa água.". Todos aprovaram a idéia prontamente. Só que um pequeno detalhe ainda tinha que ser resolvido: quem se candidataria para escalar um coqueiro?

Aqueles coqueiros eram bem altos e não dava para simplesmente esticar o braço. Zeca era um pingo-de-gente, fraco e nunca tinha subido em um coqueiro. Depois de alguns minutos de impasse, finalmente Deco, o irmão de Gigi, prontificou-se a dependurar-se naquele tronco. Gigi ficou muito feliz com a disposição do irmão e também porque sua idéia iria ser posta em prática. Deco era bem fortinho, jogava bola com os amigos todo final de semana, praticava esportes e disse já ter subido em coqueiros antes. Tirou a camisa para não suja-la, descalçou-se das chinelas e, com a cara e a coragem, encarou o desafio. Zeca bem que queria beber uma água de côco e também torceu para que desse tudo certo.

Lá foi ele. Deco se agarrou com o coqueiro e como um sagui desajeitado começou a subir os primeiros metros. Alguns poucos metros depois, viu que não era tão fácil. Suas mãos começaram a suar e seu gingado não estava dando certo, desajeitou-se, perdeu o equilíbrio e caiu. Todos estavam lá torcendo pra ele tentar mais uma vez. Então foi,... e caiu de novo. Não estava conseguindo subir naquele coqueiro. Gigi, pra defender o irmão, disse bem alto: "Ah, mas pelo menos ele tentou. E eu duvido que alguém aqui consiga fazer o que ele fez. Ninguém consegue chegar nem na metade do caminho que ele chegou. Valeu Deco!"

Zeca ficou olhando aquela história, pensou consigo mesmo sobre a questão de eficiência no cumprimento da tarefa e disse para todos: "Bem, eu não cheguei nem a tentar subir no coqueiro, mas fui bem mais eficiente do que o Deco.". A Gigi, não entendendo nada, perguntou o motivo, ao que Zeca explicou: "Se a tarefa era conseguir subir no coqueiro e pegar um côco para bebermos água e ninguém conseguiu, eu fui mais eficiente do que o Deco porque eu consegui exatamente o mesmo que ele (ou seja, não pegar o côco) e, além do mais, não fiquei nem cansado. Gastei muito menos energia para executar a mesma tarefa. Agora taí o Deco morto de cansado, suado e com dores no corpo, enquanto que eu estou aqui na boa, não perdi nenhuma energia, nenhuma gota de suor e ambos conseguimos o mesmo resultado: nenhum côco. Quem se deu melhor, hein? Nessa situação, no quesito de eficiência, eu fui bem melhor, e sem esforço."

Moral da história: Existem situações onde não fazer nada é mais eficiente do que fazer algo, principalmente se as tentativas de alcançar o objetivo forem frustradas.

(História baseada em fatos verídicos, onde um dos pensamentos que passou pela minha cabeça foi a conclusão do Zeca. Os nomes dos personagens foram modificados para proteger a identidade dos envolvidos)

terça-feira, 16 de janeiro de 2007

Poliedros Adestrados

Quando eu era adolescente, começamos a criar uma cadela como bichinho de estimação. Era uma poodle chamada Pérola. Alguns anos mais tarde, depois que a Pérola saiu lá de casa, compramos uma outra poodle e a chamamos de Milla. Assim fiquei familiarizado com a vida de um cachorro doméstico. É um animal que gosta de brincar incessantemente, está sempre do seu lado, muito carinhoso, obedece cegamente as suas ordens, faz tudo para te agradar, fica extremamente feliz quando você chega em casa e triste quando você sai. É simplesmente impressionante como os cachorros são carentes e querem carinho o tempo todo. Fico imaginando o que pode passar pela cabeça de um deles enquanto aguarda o seu dono chegar em casa: "Puxa, cadê o meu dono? Ele tá demorando muito. Tô morrendo de saudade! Eu amo meu dono.". Daí quando você chega em casa: "Esse cheiro me é familiar. Meu dono chegou. Viva! Vou lamber ele todinho, vou pular em cima dele, não vou sair do seu lado. Como ele é legal! Não consigo nem me conter de tanta felicidade. Meu coração fica a mil por hora. Estou tão emocionado. Que bom que ele chegou! Auau. Eu te amo, dono querido. Faz um carinho em mim. Auau. Que alegria!". Pois é, quem tem cachorro sabe do que estou falando.

Quando me casei, fui morar com minha esposa e os bichos de estimação ficaram na casa dos meus pais. Depois de uns dois anos de casado, acabamos por adotar uma gatinha abandonada. Pegamos ela na rua quando ela tinha aproximadamente 1 mês de vida, levamos para o nosso apartamento e demos à ela o nome de Golinha (em homenagem ao personagem Gollum da história épica "O Senhor dos Anéis"). Diferente de um cachorro que com a simples ausência da dono começa um choro sem fim, os gatos são bem mais independentes. Lembro-me que quando a cadela Milla chegou lá em casa ainda filhote, ao deixa-la no quarto e sair pela porta, ela começava a chorar quando se via só. Por outro lado, a Golinha não reclamava ao ser deixada sozinha no apartamento durante o dia. Como eu e minha esposa trabalhamos, ela fica sozinha o dia todo no apartamento. Isso seria altamente inviável para um cachorro. Os vizinhos provavelmente reclamariam muito dos latidos e gemidos de um cão carente e abandonado. Enquanto o canino te espera ansiosamente em casa, para o gato sua presença é irrelevante e, como já ouvi falar, talvez ele nem goste de você, mas apenas da casa. O cão protege a casa para você, e o gato sente-se o próprio dono da casa.

Os cachorros são muito estabanados, derrubam tudo pela casa, fazem as necessidades em qualquer lugar (se não forem ensinados), sujam-se facilmente, têm que tomar banho semanalmente, tem que sair para passear, incomodam as visitas, latem muito alto e podem perturbar os vizinhos, temos que limpar seus fedorentos dejetos, etc. Claro que os cachorros tem os pontos fortes e são, sem dúvida, o animal que melhor convive com o ser humano e muito úteis em vários aspectos. Entretanto, para quem mora em apartamento, o gato é perfeito: não faz sujeira pela casa, não desarruma as coisas, só faz as necessidades fisiológicas na caixa de areia (não precisam ser ensinados), não fica reclamando de solidão, não precisa ficar tomando banho toda semana (nem todo mês), é muito limpo, não incomoda os vizinhos, é muito independente, cuida-se sozinho, basta que a gente coloque água, comida e troque a areia da caixa. Talvez o que passe pela cabeça de um gato enquanto seu dono está fora seja algo como: "Que vida tranqüila! Ninguém para me perturbar.". E quando o dono chega em casa: "Lá vem aquele chato. Está olhando o quê? Vá cuidar da sua própria vida." (Isso se ele ao menos se desse ao trabalho de perceber a sua presença quando você chegasse em casa – o que não é o caso, na maioria das vezes). É o tipo da coisa, se você quer um companheiro e amigo compre um cachorro, mas se você quer um bicho de estimação que não dê trabalho, arrume um gato.

Quando levamos a Golinha no veterinário, eu vi uma tabela mostrando dezenas de raças de cachorros e outra tabela mostrando dezenas de raças de gatos. Algo me chamou a atenção: a tabela dos cachorros mostrava tantas raças e tão diferentes umas das outras, com cães de tamanhos minúsculos até gigantescos, cães magros e fracos até os grandes e musculosos, cães de todos os tamanhos, formatos, cores, comportamentos, especializados em inúmeras finalidades, orelha levantada ou caída, pelo longo, curto ou sem pêlo, basicamente para todos os gostos que serviriam para donos que fossem desde o atleta esportista até a dondoca sedentária; em contrapartida, a tabela dos gatos, que também mostrava tantas raças, era mais homogênea, o tamanho dos diversos gatos é praticamente constante, o peso do animal nas variadas raças é o mesmo e varia, no máximo, em uns quatro quilos (enquanto que raças caninas podem variar em dezenas de quilos), em geral o quê muda nos gatos é a coloração e características do pelo, mas a morfologia não sofre variação quase nenhuma. Os gatos parece que seguem um molde padrão que pode variar pouquíssimo, enquanto que os cachorros variam enormemente em todos os sentidos. Por quê?

Diferentes raças de cachorros apresentam uma enorme diversidade de características corporais

Os gatos são morfologicamente muito semelhantes, não sofrendo quase nenhuma diversidade corporal
Na época pensei que provavelmente poderia ter sido por causa do processo de domesticação, onde o homem teria trabalhado mais minuciosamente e dedicadamente no cachorro do que no gato, selecionando as linhagens de cachorro ao longo das gerações numa seleção artificial, além do que o cachorro teria sido mais útil e tido uma convivência melhor com o homem. Bem, em parte foi isso, mas será que foi só isso? Será que o trabalho diligente do homem na domesticação de plantas e animais é o suficiente para molda-los de acordo com sua vontade para exercer qualquer finalidade que desejar? Por quê conseguimos domesticar os porcos, vacas, galinhas, cavalos, milho e feijão, porém não conseguimos domesticar as zebras, morcegos, pingüins e guepardos? Já pensaram se tivéssemos morcegos de estimação, verdadeiros caçadores noturnos ao nosso dispor, que poderiam defender as nossas casas de indesejáveis ladrões? E os guepardos, imaginem se tivéssemos esses animais capazes de correr 110 quilômetros por hora sob o nosso comando (talvez as patrulhas policiais que perseguissem fugitivos não precisassem de carros).

Lendo um dos livros de Stephen Jay Gould chamado "Os Oito Porquinhos" me deparei com um artigo entitulado "Uma vida de cachorros no poliedro de Galton" que tinha exatamente a explicação para a minha curiosa dúvida: "Por quê as raças de cachorro são tão dispares e as raças de gato o são tão relativamente pouco?". Fiquei tão alegre quando vi essa pergunta sendo feita, é tão bom você ver que pessoas já tiveram as mesmas dúvidas que você, e mais legal ainda é verificar que já existe uma resposta. A resposta está nos Poliedros de Galton. Esse cientista vitoriano chamado Francis Galton, que foi primo de Charles Darwin, contribuiu para uma enormidade de campos do conhecimento humano, incluindo geografia, genética, estatística, meteorologia, biologia e antropologia.

A idéia do poliedro de Galton é a seguinte: ele sugeriu que a seleção natural talvez não fosse capaz de modelar ao seu bel prazer ilimitadas características corporais, pois a futura modelagem estaria restringida às trajetórias possíveis que eram limitadas pelo código genético herdado. Nas palavras do próprio Galton: "Os câmbios não se manifestam através de gradações indistinguíveis; há um grande número de estados intermediários, mas não um número infinito... A imagem mecânica seria a de uma pedra desigual que, em conseqüência de sua irregularidade apresenta um grande número de facetas naturais, sobre cada uma das quais pode fazer equilíbrio estável... Se por meio de um poderoso empurrão a pedra é forçada a sobrepassar os limites de uma faceta sobre a qual até o momento descansava, cairá em uma nova posição de estabilidade... A pedra só pode fazer um certo número de posições claramente diferenciadas."

Imaginemos uma bola de bilhar totalmente redonda. O taco pode empurrar a bola para qualquer lado, pois a superfície perfeitamente lisa da bola não impõe limitação nenhuma. A bola pode rolar para qualquer caminho livre e desimpedida. Por outro lado, um poliedro não possui toda essa flexibilidade, pois a sua estrutura interna restringe os caminhos possíveis. Um exemplo de um poliedro simples seria um hexaedro (ou seja, um cubo ou um dado convencional, com o qual estamos bastante familiarizados nos nossos jogos de tabuleiro). Como explica Gould: "Em termos do modelo clássico do poliedro de Galton, o taco de bilhar da seleção natural sempre pode dar o empurrão efetivo, mas se os canais internos (fixados pela história e implantados na arquitetura genética e ontogênica dos organismos atuais) delimitam um conjunto de trajetórias possíveis como condutos para o empurrão da seleção, então estas constrições internas seguramente podem reclamar igual peso como a seleção natural em qualquer explicação completa sobre as causas do câmbio evolutivo particular."

A bola pode alcançar um número ilimitado de posições, contudo os dados só podem configurar poucas possibilidades de resultados diferentes
Sim, mas o que um cachorro e um gato tem a ver com um poliedro? Tudo. A ilustração de Galton explica perfeitamente o motivo da impossibilidade de modelarmos livremente qualquer característica que nos aprouver. Os animais são visitantes tardios num mundo antigo e já possuem toda uma história por trás herdada a duras penas ao longo das inúmeras gerações. Não dá para modificar irrestritamente um projeto que já está em andamento, ignorando a sua história. Para entendermos melhor, verifiquemos o ancestral dos cachorros, isto é, o lobo, a partir do qual o homem selecionou artificialmente a espécie canina. A espécie Canis lupus (lobo-cinzento) foi a ancestral do Canis lupus familiares (cachorro). O que acontece é que esse ancestral possuia uma variabilidade genética muito alta, isto é, uma flexibilidade muito grande, o que dava margem a uma enorme gama de possibilidades, como se fosse um poliedro com inúmeras faces. Como explica Gould: "A cachorro é nosso animal doméstico mais importante, porque seu antepassado, o lobo, Canis lupus, havia desenvolvido alguns padrões afortunados da história, figurando certa predisposição para a companhia humana... A domesticação requeriu certa estrutura de comportamento preexistente.". Enquanto que o Felis silvestris (gato-selvagem) que é o ancestral do Felis silvestris catus (gato doméstico) já tinha uma variabilidade menor, como se fosse um poliedro com menos faces do que o ancestral do cachorro. Isso limitou tremendamente a seleção artificial feita pelo homem, com o gato não sendo tão plástico e maleável quando o cachorro. Mais uma vez, como complementa Gould: "Um leão difere de um gato doméstico muito menos do que um cachorro grande de um pequeno.".

A título de ilustração digamos que o gato é um hexaedro (com 6 faces) e o cachorro é um dodecaedro (com 12 faces). Essa é uma ilustração bem grosseira, diga-se de passagem, porém a idéia básica não perde o sentido e dá para entender facilmente. Então, se um cachorro é um dodecaedro e um gato é um hexaedro, fica fácil de perceber por quê os gatos são tão arredios. Os cachorros nós podemos colocar uma coleira e puxa-los para o lado que for com algumas restrições básicas (por isso temos a oportunidade de termos cães para exercer funções de guarda, caçador, guia de cegos, policial, saltador, corredor, nadador, farejador, pastor, palhaço de circo, ator de cinema, companhia e toda uma infinidade de outras funções), mas um gato não aceita coleiras e suas restrições são bem mais fortes (por isso temos a oportunidade de termos gatos que são... gatos). Gould conclui dizendo: "As diferenças de diversidade entre as espécies domésticas dependem em maior grau da variação disponível no desenvolvimento dos antepassados selvagens do que da magnitude de esforço humano colocado na seleção... Assim pois, levando a metáfora do poliedro de Galton até a sua conclusão , as direções reais do câmbio evolutivo são resultado da interação dinâmica entre o empurrão externo e das restrições internas."

Nos jogos de RPG, os participantes usam dados de várias faces: 4, 6, 8, 10, 12, 20, etc. Dependendo do dado que for escolhido, da quantidade de faces que ele possuir, o jogador terá mais possibilidades de desbravar caminhos que sua imaginação permitir sempre com as restrições dos números que vão aparecer em cada lado. Quanto mais arredondado for o dado, mais ele vai rolar na mesa, mais longe ele vai chegar, mais viradas pode dar, desta forma tornando os caminhos a serem percorridos inúmeros, e quanto menos faces tiver o dado, mais bruscas serão suas viradas dificultando bastante a rolagem e limitando as trilhas do aventureiro. Então, nós que estamos tentando modelar os nossos animais e plantas temos que ter em mente que nem tudo é possível e que mesmo com tempo suficiente, criatividade e diligência exagerada ao longo das gerações, nossos poliedros adestrados nos impõem limites aos quais temos que respeitar.

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Esponjas Permissivas

Muitos animais não precisam de cuidados paternos, pois já nascem prontinhos para a vida. Aranhas não precisam aprender a fazer teias, pois já nascem sabendo o estilo de tecelagem de sua espécie, com toda a programação genética embutida e gravada no seu DNA. Tartarugas marinhas saem dos ovos e vão direto correndo para o mar e não precisam ter aulas de natação. Filhotes de jacaré já saem dos ovos abocanhando os primeiros peixinhos que encontram pela frente. E os tubarões são tão precoces que já começam a caçar antes mesmo de nascerem, onde, através da prática do canibalismo, os irmãos comem uns aos outros dentro do ventre materno sobrevivendo os mais fortes e aptos, mostrando desde cedo que são predadores natos (será que poderíamos dizer "pré-natos"?).

Por outro lado, inúmeras espécies não podem sobreviver desprovidas de cuidados parentais. Os pequenos filhotes das aves precisam que suas dedicadas mães tragam o alimento e regurgitem diretamente na sua garganta; os mamíferos precisam dos iniciais cuidados maternos com a obrigatória amamentação; e assim por diante. E nós estamos nesse grupo, o grupo dos necessitados que carecem de tratamento especial. Quando nascemos, somos totalmente dependentes de nossos pais. Precisamos deles para tudo, desde a alimentação até o convívio social. Se um bebê humano for deixado sozinho e sem cuidados, não tem a menor chance de sobrevivência. E os humanos, além das dependências físicas, ainda temos uma dependência a mais, a dependência cultural.

Para ilustrar a nossa precoce dependência cultural, lembro-me de um filme. Tem alguns filmes que a gente assiste mil vezes e nunca fica sem graça, principalmente se for uma boa comédia. Para mim, um desses filmes é "O Tiro Que Não Saiu Pela Culatra" (Parenthood). A trama acontece ao redor da família Buckman e foca em toda a problemática que qualquer família pode ter: filhos problemáticos, adolescentes mal-humorados, brigas de namorados, pais inexperientes, esposas incompreendidas e maridos desleixados. Um dos membros da família, interpretado pelo ator Rick Moranis, tenta educar sua filha com doses exageradas de informação. Num dos diálogos, ele diz: "Nossas crianças são mais capazes de absorver informação do que nós... mesmo assim nós insistimos em trata-las como se fossem adoráveis pequenos retardados. Elas são como esponjas, apenas esperando para absorver.". Apesar de no filme o personagem satírico, que é esse pai, ter um zelo excessivo pela educação da filha, talvez chegando até mesmo a ser prejudicial, ele está certo em uma coisa: nossos cérebros são como esponjas, sedentos por informação.

Seria um exagero descabido dizer que nascemos totalmente despreparados. Obviamente que o nosso cérebro já está preparado para fazer muitas coisas, além de manter o funcionamento básico de corpo. Já nascemos sabendo algo muito importante, nascemos sabendo absorver informações e, principalmente, sabendo aprender. Tendo instrumentos aptos para captar informações de todos os lados, usando pela primeira vez os cinco sentidos, captamos os sons das vozes dos nossos pais, a imagem dos seus rostos e o carinho de suas mãos.

O ambiente no qual somos expostos é primordial para o nosso desenvolvimento. Sendo pouco estimulados, seriamos limitados em nossas capacidades. Por exemplo, uma criança que nasce surda não é estimulada com os sons da linguagem de seus pais, consequentemente não aprende a falar, daí o termo "surdo-mudo", onde a mudez foi conseqüência direta da surdez, mesmo que todos os aparelhos vocais estejam plenamente funcionando (esse quadro pode ser revertido com o acompanhamento adequado). Outro caso seria uma criança que se tornaria cega de um olho se, desde o seu nascimento, mantivéssemos um tampão num dos seus olhos, evitando o estímulo luminoso tão necessário para a formação completa da visão (esse quadro é irreversível). Em contrapartida, num ambiente amplamente estimulante, os maiores dons podem brotar de uma mente infantil.

Um aspecto que temos que levar em conta é que a mente de uma criança não possui mecanismos para selecionar o que está sendo aprendido. Tudo é válido. O cérebro não tem preferências. A entrada é liberada para qualquer tipo de ensinamento. Sendo totalmente indefesos nos primeiros momentos de vida, não podemos nos dar ao luxo de ficar escolhendo o que vamos aprender (na verdade, nem possuímos critérios para isso). Só o que podemos esperar é que nossos pais, tendo sobrevivido até o ponto de terem tido filhos, saberão cuidar da gente. Temos que confiar neles. Temos que absorver tudo que eles têm a nos dizer, afinal esse pode ser o seu segredo de sua vitória.

No ponto de vista dos genes, podemos usar uma ilustração resumida para entender o que se passa: "Eu sou um gene e quero me replicar. Para isso devo fazer com que o corpo que me possua reproduza-se (em outras palavras, replique-se). Depois disso, uma cópia de mim fará parte de outro corpo mais jovem. Não quero desperdiçar essa nova cópia. O corpo antigo, tendo sido bem sucedido na arte da sobrevivência, certamente saberá o que é melhor para o corpo jovem. Ele cuidará bem da sua prole, afinal é um importante investimento genético. Então, estando num corpo jovem, devo fazer com que este corpo confie cegamente no que o corpo antigo disser e ensinar. Meu novo corpo aprenderá e obedecerá tudo que o antigo me disser, afinal de contas, deve ser com esses ensinamentos que ele conseguiu sobreviver até se reproduzir.". Logicamente que genes não pensam e nem fazem planos para o futuro. Mas isso é apenas uma forma de interpretar o mecanismo inevitável que sofrem os genes durante a seleção natural, sendo que aqueles que projetam melhores corpos tendem a sobreviver ao longo das gerações, enquanto que aqueles que não colaboram na construção de um corpo eficiente certamente serão ceifados pela implacável seleção natural. (Ignorando a ilustração do gene, o argumento não ficará mais fraco, pois, como já foi explicado, não temos, a priori, qualquer critério de escolha do que vamos aprender, absorvendo liberalmente qualquer informação que nos atinja).

Sendo tão "permissivos" a qualquer entrada que seja, estamos vulneráveis a qualquer tipo de "contaminação" cultural local a que formos expostos. Nascendo no Brasil, aprenderemos a falar português, nascendo no Japão, aprenderemos a falar japonês. Não importa a cultura onde a criança nasça, o cérebro está preparado para aprender qualquer coisa, seja uma língua primitiva de uma tribo africana isolada, seja as abstrações mais imaginativas da tela de um computador na Europa civilizada. Aprender é o nosso dever para podermos sobreviver. Temos que nos comunicar com os outros, temos que gritar por comida, temos que pedir por água e temos que mostrar onde nos machucamos quando caímos. Nossos cérebros são como esponjas permissivas acríticas que absorvem qualquer vento de doutrina, qualquer sopro de ideologia, cantos tibetânos ou cantigas de ninar. Já ouvi falar de um menino de apenas 4 anos que sabia celebrar uma missa completa, toda a liturgia, todas as falas do padre e todos os cânticos, sem errar uma vírgula. O que quer que ouçam, guardam firmemente em sua mente e aquilo fica marcado como ferro quente nas costas de um touro, seja mentira ou verdade, mito ou realidade, exagero ou precisão, não possuem ferramentas para criticar tais ensinamentos. Só resta aprender e aprender, permissivamente.

"Esponjas" absorvendo culturas variadas

Não apenas os pequeninos, mas durante toda a nossa vida ainda absorvemos informação constantemente, e a nossa permissividade esponjosa continua conosco. Obviamente que um adulto pode criticar melhor as informações que recebe, mas em muitos casos não é isso que acontece e continuamos tão influenciáveis quanto antes. Somos muito frágeis e nossa fragilidade nos leva aos mais diferentes caminhos para apaziguar nossos sofrimentos de cada dia. Somos facilmente enganados, inclusive por nós mesmos, e nem percebemos.

Felizmente existe um método de evitarmos sermos iludidos por nós mesmos chamado "método científico". Comparando evidências e fazendo experimentos, observando fenômenos e verificando seus resultados, podemos testar as inúmeras hipóteses que elaborarmos e eliminar os caminhos do engano. Não é um método perfeito (se é que isso existe), afinal somos humanos e também somos guiados por emoções, mas garante suficientemente bem a imparcialidade das conclusões. Como disse Carl Sagan "A ciência está longe de ser um instrumento perfeito de conhecimento. É apenas o melhor que temos.". E também diz: "A ciência é uma forma de não enganarmos a nós mesmos". No seu livro "O Mundo Assombrado Pelos Demônios", Carl Sagan nos brinda com um "Kit de detecção de mentiras" em um de seus capítulos. É um kit muito interessante e vale a pena das uma olhada. Para cérebros permissivos e enganáveis como os nossos, é sempre bom estar preparado.

sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Reflexos hereditários de um passado distante

Bungee Jumping é um esporte moderno e radical, e seus praticantes são aventureiros e corajosos. Esses "malucos" sobem em lugares bem altos com centenas de metros de altura como plataformas, prédios, pontes ou penhascos naturais. Amarram cordas elásticas nos seus pés e saltam para o vazio em queda livre. Com toda a tecnologia moderna ao seu dispor, alguns metros antes de atingirem o duro chão, são puxados para cima em segurança, evitando um impacto que certamente seria mortal. Pendurados como um ioiô, ficam balançando no ar enquanto os instrutores operam os equipamentos e os colocam seguramente em terra firme.

As sensações de quem pratica tal esporte são das mais variadas desde um friozinho na barriga até uma grande tontura ao se ver em pé diante de tamanho precipício. O medo é a sensação mais comum diante dessa situação e muitos desistem antes mesmo de subir o primeiro degrau da plataforma. Outros esportes como paraquedismo, rapel e canoagem podem trazer a tona sensações semelhantes.

Analisemos a situação desses esportes radicais. Temos à nossa disposição a melhor tecnologia do mundo de todos os tempo: cordas super resistentes capazes de agüentar várias toneladas de peso; elásticos de primeira qualidade; capacetes inquebráveis; cintos de segurança com fivelas mais do que suficientes; equipamentos especializados para amarração; travas de segurança; equipamento de backup (a redundância é um fator de segurança); dentre tantos outros detalhes. Esses equipamentos sofrem revisões constantemente e são testados nas mais severas condições. Os instrutores são pessoas qualificadas e experientes e os locais apropriados para a prática desses esportes seguem as mais rígidas normas de segurança. Obviamente que em lugares não certificados, com pessoas desqualificadas e material inapropriado, podem acontecer acidentes. Contudo não estou me referindo a essas condições indesejáveis. Estou falando de locais adequados com toda a segurança possível, onde a probabilidade de ocorrer um acidente é praticamente nula.

Chegando nesses locais apropriados para prática desses esportes, mesmo tendo certeza de que é praticamente impossível a chance de se acidentar, a pessoa passa por um processo onde seu corpo reage ao "ilusório" perigo, como se o cérebro não soubesse de toda a segurança envolvida. Imaginemos um lugar onde milhares de pessoas que já saltaram de bungee jumping, tudo funcionando perfeitamente, segurança máxima e divertimento garantido. A pessoa, ao subir na plataforma, completamente equipada e amarrada, pronta para saltar, ao olhar para baixo, as suas pupilas começam a dilatar-se, o coração bate mais forte, a adrenalina é liberada no organismo, a respiração fica mais ligeira, os músculos ficam contraídos e a pessoa fica totalmente em estado de alerta.

Observando o cenário descrito, uma perguntinha que pode nos vir a mente é: "Por quê tanto alarde?". O equipamento é seguro, o local é apropriado, a segurança é máxima, milhares de outros já pularam antes em completa segurança sem sofrer nenhum aranhão. Então, por quê o medo? A resposta para essa pergunta está escondida no passado remoto de nossos ancestrais e no cenário em que viveram.

O ambiente no qual nossos ancestrais viveram o que imperava era a lei da selva, literalmente. Matar ou morrer! Fugir e se esconder num lugar seguro ou ser dilacerado pelos dentes do predador faminto. Num ambiente tão agressivo, temos que estar preparados para a sobrevivência. E os mecanismos corporais que nos deixam capazes de reagir são exatamente essas sensações que sentimos quando estamos, mesmo que aparentemente, em perigo. Os nossos genes "querem" se replicar, mas para isso, devem sobreviver, e para sobreviver, numa situação de perigo, tem que deixar o corpo bem alerta. Então, quando nosso cérebro capta imagens que nos parecem perigosas, como os grandes dentes de um feroz predador ou a visão de um desfiladeiro que pode nos derrubar, os processos químicos que se passam no nosso corpo tem que nos deixar bem ligados e nos dar forças imediatas para podermos correr e nos livrarmos do perigo eminente.

No ambiente onde nosso cérebro foi moldado, não existiam cintos ou travas de segurança, mas apenas dentes afiados, precipícios mortais e pernas para correr. Até uns pouco milhares de anos atrás nada como paraquedismo ou bungee jumping com seus equipamentos de segurança máxima estava nem perto de existir. A evolução biológica é um processo muito lento contado em termos geológicos, e não pode acompanhar nem de perto a evolução das civilizações, e muito menos a evolução tecnológica. Em 100 mil anos, nossos genes não mudaram quase nada, mas em apenas algumas décadas toda a tecnologia mudou incontáveis vezes.

Desde que surgiu o telefone celular há alguns anos, uma pessoa, num intervalo curto de alguns míseros anos, pode ter tido acesso a todos os modelos, desde o primeiro "tijolão" que dificilmente alcançava outra cidade, até os novíssimos mini-celulares que cabem na palma da mão e ligam para qualquer lugar do mundo. Há algumas décadas, surgiu o primeiro computador que ocupava uma enorme sala e tinha uma capacidade de processamento limitadíssima, enquanto que hoje temos computadores de mão que armazenam vários gigabytes de informações em todos os formatos que se possa imaginar. Em outras palavras, os nosso genes não podem competir com a inovação rápida das civilizações, de tal forma que, geneticamente falando, ainda estamos nas savanas africanas fugindo de leões famintos.

Então, quando nos colocamos em pé numa plataforma há centenas de metros do chão, o que o nosso cérebro entende é o seguinte: "Lugares altos são perigosos. Deve ser liberada adrenalina para deixar o corpo mais alerta. Dilatar as pupilas para ver melhor. Tentar sair desse lugar o mais rápido possível.". E quando um mergulhador está dentro de uma jaula aquática observando a vida de tubarões, o seu cérebro entende: "Animais com aparência agressiva são perigosos. Evitar aproximar-se do animal. Sair rápido desse lugar.". Não tem como o nossos genes e cérebro "saberem", a priori, que aqueles equipamentos de segurança evitariam a morte. Essas variáveis modernas não estão programadas nos nossos genes e o "cabeamento" dos nossos neurônios está montado justamente para considerar aquilo como perigo extremo. Da exata mesma forma que, quando uma pessoa faz um transplante de coração e precisa tomar remédios contra a rejeição do tecido estranho, não dá para avisar aos anticorpos para não atacarem aquele novo órgão. Os anticorpos estão programados para lidarem como se fosse um alienígena intruso (algo que realmente é), e é por isso que existe a rejeição do novo orgão que pode causar uma infecção e até a morte, caso não sejam administrados medicamentos repressores de anticorpos. Mais uma vez, como os anticorpos "saberiam" que não se deve atacar o tecido implantado? Simplesmente não dá. Temos inevitavelmente que conviver com os reflexos hereditários de um passado distante.

Com isso, podemos entender vários dos nossos comportamentos. Por exemplo, nós primatas somos bastante solícitos uns com os outros. O paleontólogo Stephen Jay Gould no seu livro "Os Oito Porquinhos" (Eight Little Piggies) em um ensaio entitulado "Dez mil atos de bondade" explica: "O quê vemos num dia qualquer nas ruas ou nos lugares de qualquer cidade norte-americana ou, inclusive, no metrô de Nova York? Vemos milhares e insignificantes atos de amabilidade e consideração. Afastamo-nos para ceder lugar à alguém, sorrimos para uma criança, mantemos conversas desinteressadas com um conhecido ou, inclusive, com um estranho. Em quase todos os momentos, na maior parte dos dias, na maioria dos lugares, o quê se pode ver do nosso lado obscuro? Talvez um pai dando um cascudo no filho ou um adolescente sobre um patins fechando o caminho de uma velhinha?... Unicamente desejo salientar uma questão de estatística. Nada é mais estranho e antipático à mente humana do que pensar corretamente sobre as probabilidades. Muitos de nós temos a impressão de que a vida cotidiana está constituída por uma série interminável de moléstias, de que 50 por cento ou mais dos encontros humanos são tensos ou agressivos. Porém pensemos nisso com seriedade por um momento. Semelhante nível de agressividade não poderia suportar-se. Se a metade das vezes em que nos abríssemos a outro ser humano, este nos recebesse com um soco no nariz, a sociedade cairia de imediato na anarquia. Pelo contrário, quase todos os encontros com outra pessoa são no mínimo neutros e, em geral, suficientemente agradáveis. Homo sapiens é uma espécie de notória afabilidade."

Sendo animais gregários e sociais, vivemos em sociedades onde os indivíduos precisam uns dos outros para sobreviver. Sentimos vontade de estarmos próximos uns dos outros, de comunicarmo-nos, de trocarmos favores, enfim, conseguimos nos colocar no lugar do outro, identificando-nos com ele e sentindo compaixão pelo próximo. Nossa espécie evoluiu num ambiente de bandos com poucas dezenas de indivíduos, onde a ajuda mútua era imprescindível. Para se ter uma idéia de como era o estilo de vida dos nossos tataravós símios, seria algo bem parecido em como vivem os bandos de babuínos, hoje em dia. Os indivíduos tem interesses próprios, obviamente, e uma forma de acordo social é exatamente a troca recíproca de favores (algo como "você cata os meus piolhos e eu coço as suas costas"). Naqueles tempos, os indivíduos sabiam que os seus próximos conviviam com eles continuamente e que se fizessem um favor ao outro, muito provavelmente, num futuro bem próximo, aquele outro poderia retribuir-lhe aquele favor. Outro fator importante é o investimento genético que estava presente nos indivíduos vizinhos. Nesses pequenos bandos, certamente você estaria cercado de primos e irmãos, e ajudar os seus familiares é uma forma de ajudar ao seu próprio interesse genético. No livro "O Gene Egoísta" do etólogo Richard Dawkins, isso é explicado com tremenda profundidade, onde ele demonstra que o "egoísmo" dos genes (aqui o termo "egoísmo" não representa o sentido que empregamos no nosso uso cotidiano) pode resultar na formação de indivíduos altruístas. Resumindo, esse comportamento social de ser solícito uns com os outros, em parte, deve-se a esses ambientes sociais onde emergiram tais necessidades.

Hoje em dia, vivemos em grandes cidades com milhões de habitantes. Rotineiramente não estamos cercados de primos e nem de irmãos, e nem podemos contar com a retribuição futura de favores, quando, muito provavelmente, uma pessoa que conhecemos hoje, talvez nunca mais a vejamos. No entanto, mais uma vez, a nossa solicitude mútua provém também dessas heranças evolutivas e, muito provavelmente, sentiremos o desejo de ajudar o outro em alguma coisa. Em parte, isso explica a origem da nossa moralidade. De fato, como os nossos genes e cérebros "saberão", a priori, que aquele desconhecido não é o nosso companheiro e querido irmão? De certa forma, é nosso irmão, mesmo que desconhecido.

quinta-feira, 4 de janeiro de 2007

Maravilhosas Coisas Pequenas

Quando penso sobre coisas pequenas, lembro-me logo do salário do Professor Raimundo e do intervalo de vida de uma Ephemeroptera adulta (mais conhecida como "efémera", esse inseto vive apenas algumas horas), mas uma das coisas que encabeça essa lista certamente é o tímido Neutrino. Digo que é tímido porque esta partícula subatômica possui uma fraca interação com a matéria e dificilmente é detectada.

O neutrino é tão ridiculamente pequeno que pode atravessar a Terra em uma fração de segundos como se o planeta não existisse. Para falar a verdade, se quiséssemos parar um neutrino desgarrado, teríamos que usar, em média, uma parede de chumbo com uma espessura de vários anos-luz. É o tipo da coisa, se pudéssemos ter uma conversa com um neutrino para avisa-lo que ele estava prestes a se "chocar" com uma parede de chumbo de bilhões de quilômetros de espessura, a conversa seria mais ou menos assim: "Ei Sr. Neutrino, cuidado! Tem uma parede gigantesca na sua frente!", ao que o neutrino prontamente responderia: "Onde?". Então quando ele já estivesse lá pela metade do caminho por dentro da parede, ficaria imaginando se aquela pessoa não sofre de algum tipo de alucinação.

Outra coisa pequena é o nosso planeta diante da imensidão do universo. A espaço-nave Voyager 1 foi lançada em 5 de Setembro de 1977 e hoje é o objeto de fabricação humana mais distante da Terra, já tendo ultrapassado os limites do nosso sistema solar. Sabendo disso e curioso como só ele, o astrônomo Carl Sagan teve a interessante idéia de pedir para o pessoal da NASA fazer uma manobra arriscada. Ele deve ter dito algo como: "Ei pessoal, já que a gente não tá fazendo nada agora, que tal girar a câmera da Voyager 1 pra trás e tirar uma foto da Terra? Aproveitem para olhar para cima, abrir aquele sorriso e dar um tchauzinho!". O pessoal não gostou muito da idéia, pois seria uma operação bastante trabalhosa e arriscada, mas depois de muita resistência, aceitaram o pedido. Em 14 de Fevereiro de 1990, já tendo percorrido 6,4 bilhões de quilômetros, a Voyager 1 capturou a imagem da nossa Terra. Um mundo inteiro preenchendo apenas 0,12 pixel numa fotografia.

Fotografia do planeta Terra tirada pela Voyager 1 de uma distância de 6,4 bilhões de quilômetros, representada pelo minúsculo pontinho dentro do círculo azul

Isso nos faz pensar sobre o nosso lugar no universo. Inspirado pela foto, Carl Sagan escreveu o livro "Pálido Ponto Azul" (Pale Blue Dot), onde discute sobre o lugar da humanidade na arena cósmica. Temos que ser bastante humildes diante disso tudo. Certa vez, já pensamos estar no centro do universo, com os planetas e estrelas girando ao nosso redor, para depois descobrimos que não era bem assim. De fato, nós é que estávamos habitando um pequeno planeta errante que, junto com vários outros astros, gira ao redor de uma estrela medíocre e esquecida num canto de uma galáxia qualquer dentre tantas outras. Por um tempo ainda continuamos achando que a espécie humana era o ápice da criação, quando então percebemos que somos apenas um acidental ramo tardio de um incomensurável arbusto que se ramifica copiosamente ao longo das eras geológicas, e que a nossa futura e inevitável extinção não afetará nem minimamente a economia cósmica.

Localização do nosso Sol dentro da galáxia Via Láctea que possui aproximadamente 400 bilhões de estrelas

A Terra, apesar de sua notória pequenez, tem sua merecida importância. É o nosso lar, e isso a faz mais especial do que qualquer outro planeta. Um trecho do livro "Pálido Ponto Azul" diz: "Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, 'superastros', 'líderes supremos', todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol."

A Terra abunda em vida, o que a torna mais interessante do que qualquer planeta gigante e desabitado. Fica na esquina esquecida de uma galáxia dentre centenas de bilhões de outras, mas tem seu brilho todo especial. E nós, mesmo sendo um simples ramo de uma gigantesca árvore da vida, podemos nos maravilhar com toda essa beleza. Por menores que sejamos e por mais insignificantes que pareçamos, a vida é valiosa e representa a maior das maravilhas da natureza. Nós, especificamente, ainda temos o privilégio de sermos seres conscientes e inteligentes. E a inteligência deve ser um artigo raro no universo, por mais abundante de vida que ele deva provavelmente ser em tantos outros lugares.

De acordo com o biólogo Christian De Duve, laureado com o Prêmio Nobel de Fisiologia, no seu livro "Poeira Vital" afirma: "A vida é uma manifestação natural da matéria.". E eu completo dizendo: "E que manifestação espetacular!". E como comentou Carl Sagan: "Nós somos uma maneira do Cosmos conhecer a si mesmo".

terça-feira, 2 de janeiro de 2007

Visitante tardio num mundo antigo

Desde crianças, aprendemos de forma resumida sobre o ciclo da vida. Os nossos primeiros professores dizem que: "o ser vivo nasce, cresce, reproduz-se e morre". Sendo que, quando nascemos, uma infinidade de acontecimentos já se passou pelo mundo: impérios surgiram e caíram, guerras tiveram lugar, várias descobertas foram feitas e tantas outras invenções elaboradas, continentes foram colonizados, revolucionários e descobridores deixaram sua marca, pessoas escreveram livros divulgando seus pensamentos e assim por diante. E isso se dá de tal forma que quando nasce um bebê, ele tem que passar vários anos estudando numa escola só para poder aprender o básico do que já aconteceu, uma revisão geral, tentando recuperar o conhecimento até então acumulado por tantos outros que nasceram e morreram antes dele para que, só então, consiga dar continuidade, daí para a frente, ao progresso de sua civilização.

Nascendo tão tardiamente num mundo tão antigo, pode nos levar a mal-interpretarmos várias coisas. Uma criança pode olhar ao seu redor e pensar que tudo aquilo que ela vê sempre esteve ali e sempre foi daquele jeito. Um pensamento que pode ter é que "o mundo foi feito para mim". Imaginemos, uma criança, com uma visão limitada sobre a história, vendo todos aqueles maravilhosos brinquedos, aqueles carros que levam as pessoas, aqueles equipamentos eletrônicos, computadores, telefones e televisão. Tudo tão prontinho, tudo tão bem acabado. Uma bicicleta que é especialmente para o seu tamanho e um tênis que cabe direitinho no seu pé.

Isso me faz lembrar de uma história contada por Rubens Alves sobre uma experiência feita com macacos. Uns psicólogos puseram cinco macacos dentro de uma jaula, dentro da jaula uma mesa, em cima da mesa um cacho de bananas. Os macacos entraram lá, viram as bananas, viram a mesa e, inteligentes que são, disseram: "vamos subir na mesa para comer banana". Na hora em que o macaco subiu na mesa, os psicólogos estavam preparados com uma mangueira de água gelada e deram um banho nos macacos, que não apanharam a banana. Passado um tempo, resolvem: "vamos comer banana". Outro macaco subiu em cima da mesa e os psicólogos deram outro banho gelado no macaco. Eles não entenderam o que estava acontecendo. Mas, depois do quarto banho, perceberam que havia uma lógica: quando subiam em cima da mesa, vinha banho. Como não queriam tomar banho, estabeleceram, lá entre eles, o seguinte: quem tentasse subir na mesa apanhava. Então, toda vez que um macaco tentava subir na mesa, ele apanhava. Os psicólogos tiraram um macaco que sabia do banho e puseram um macaco fresquinho, que nada sabia sobre o banho. Ele chegou lá, viu a banana e falou: "eu vou comer banana". Na hora que ele tentou subir na mesa, os outros quatro o agarraram e deram uma surra nele. Ele não entendeu nada: achou que era um trote. Passado algum tempo, ele pensou: "vou comer banana". Na hora que ele subiu na mesa, apanhou de novo. Na terceira vez que isso aconteceu, ele compreendeu: nesta jaula, macaco que tenta subir na mesa, apanha. Aí tiraram mais um macaco e puseram outro macaco fresquinho. Aconteceu exatamente a mesma coisa: quando ele tentou subir na mesa, não só os três, que já sabiam do banho, mas também o outro, que nada sabia do banho, se juntaram e deram uma sova no macaco. Aí eles foram tirando os macacos até que ficaram lá só macacos que nada sabiam do banho. Mas eles continuavam a bater nos macacos que subiam na mesa. Os psicólogos brincam, dizendo: se perguntassem aos macacos por que agiam assim, eles responderiam que: "É porque, nesta jaula, sempre foi assim: quem sobe na mesa, apanha.".

Essa idéia de que "sempre foi assim" é algo tão básico e intuitivo que, às vezes, é difícil de percebermos o nosso engano. Tantas são as sociedades humanas que continuam praticando rituais antigos exatamente porque "sempre foi assim desde o inicio dos tempos". Contudo, ao longo do tempo e amadurecimento, aquela criança vai aprendendo que tudo que está ao seu redor nem sempre foi assim. À primeira vista, realmente pode parecer que tudo já estava pronto e bem ajustado, mas olhando bem para trás e estudando a sua história vai ver que antigamente os carros eram puxados por animais, as roupas eram feitas de pele e os brinquedos eram meros artefatos de madeira. Nada de computadores, no máximo um ábaco primitivo. Nada de comida fácil e fresquinha congelada na geladeira, mas apenas animais em currais prontos para o abate.

Foi um longo caminho até onde estamos, com um grande acumulo de conhecimento, aproveitando as estruturas já montadas pelos nossos ancestrais. O nosso ciclo de vida ser tão curto, permitindo que vivamos apenas algumas décadas, é uma das limitações que nos levam a esse engano. Mas podemos ser esclarecidos pelos registros históricos, pelas cartas de nossos avós, pelas ferramentas primitivas do "homem das cavernas", pelas construções deixadas por civilizações antigas, por papiros enrolados dentro de bibliotecas antigas, enfim, pelos vestígios da nossa própria história.

Mais difícil ainda é percebermos o engano que muitos temos sobre o mundo natural. Ficamos surpresos ao contemplar as maravilhas da natureza. Vemos sistemas fina e minunciosamente ajustados: a audição dos cachorros conseguindo ouvir sons em uma larguíssima faixa de freqüências e seu olfato sentindo milhares de aromas diferentes; abelhas e flores mutualmente dependentes para a sobrevivência recíproca onde uma dá o alimento e a outra cuida da polinização; vacas que possuem bactérias no tubo digestivo especializadas na fermentação da celulose ajudando na sua digestão; os dentes do leopardo ficaram cada vez mais afiados e as pernas das gazelas tornaram-se mais musculosas e rápidas ao longo da "corrida armamentícia" que travaram um contra o outro; as zebras tentaram ficar invisíveis na paisagem, enquanto que a visão do leão ficava mais aguçada; tubarões que têm sensibilidade suficiente para sentir uma gota de sangue dentro de uma piscina olímpica; morcegos que, tendo hábitos noturnos, possuem um afinadíssimo sistema de ecolocalização onde conseguem saber exatamente a localização de pequenos insetos (além de não se confundirem com os estalos produzidos pelos outros morcegos ao seu redor e manobrarem perfeitamente entre as árvores e dentro de cavernas); e os seres humanos com suas ágeis mãos capazes de manipular todo tipo de objetos e seus cérebros avantajados capazes de criar as mais modernas máquinas e entender como funciona (apesar de não completamente) o mundo ao seu redor.

Como comentei no texto "Ilusão de Separação", temos dificuldade de pensar em termos de milhares de anos e menos ainda podemos conceber tempos geológicos de centenas de milhões de anos. Sendo produtos tardios de um processo de evolução biológica que começou há bilhões de anos, fica difícil recapitularmos tudo que se passou até aqui. Ao olharmos para a natureza, só vemos produtos finais (porém continuando a evoluir) de um mundo antigo, produtos já em plena interação e temos a ilusão de que "sempre foi assim".

Vemos os cavalos e percebemos que eles só tem um dedo. Será que sempre foi assim? Ao estudarmos sua embriologia e anatomia, verificamos vestígios de outros dois dedos ainda remanescentes deslocados por detrás da pata e escondidos das nossas vistas, e nos fósseis de seus ancestrais vemos os três e até quatro dedos completos. As baleias sempre estiveram no mar? Da mesma forma, ainda verificamos vestígios de quadris e até mesmo pernas e dedos, que antigamente foram usados por seus ancestrais terrestres (por exemplo, Abulocetus natans) na transição da terra para a água. E nós humanos, sempre vestimos ternos e calçamos sapatos? Nem sempre. O embrião humano passa por um estágio no qual possui guelras (lembrando-nos de nossos ancestrais aquáticos) e outro, em que apresenta cauda (lembrando-nos do nossos ancestrais subsequentes, os répteis). Essas "sombras de antepassados esquecidos" somem à medida que o desenvolvimento continua e o feto, então, vem a tomar a forma de um ser humano, escondendo-nos (não completamente) tudo que já se passou.

Embrião humano com 4 semanas

Felizmente, da mesma forma que podemos contemplar os artefatos de tempos históricos e aprendermos sobre as civilizações antigas, também podemos aprender sobre o passado do mundo natural através daquilo que nos foi deixado de herança: fósseis, desenvolvimento embriológico, anatomia, órgãos vestigiais, e a maior herança de todas, o nosso DNA. O nosso código genético é um verdadeiro livro de histórias contando sobre as dificuldades e vitórias de tempos antigos, conta-nos sobre as lutas que travamos, os lugares por onde passamos, os continentes que colonizamos, enfim, um verdadeiro tratado histórico sobre a vida. Sobre isso, o geneticista inglês Bryan Sykes escreveu um livro fabuloso chamado "As Sete Filhas de Eva" (The Seven Daughters of Eve), onde através de uma ampla pesquisa sobre o DNA mitocondrial conseguiu descobrir muito da vida das nossas "mães ancestrais" e como elas levaram seus clãs para todos os cantos o mundo.

É isso que somos, visitantes tardios num mundo antigo, carregando conosco as cicatrizes dos tortuosos caminhos que seguiram nossos ancestrais.